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Crítica | Era Uma Vez na Anatólia

por Luiz Santiago
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Há filmes que parecem ser realizados em momentos epifânicos da carreira de um diretor. Era Uma Vez na Anatólia, de Nuri Bilge Ceylan, é um desses filmes. Nomeado à Palma de Ouro no Festival de Cannes e premiado com o Grande Prêmio do Júri, a obra é um exercício de reflexão que traz como plano de fundo um assassinato.

Por sua característica de movimento constante, Era Uma Vez na Anatólia poderia ser um road movie, mas se afasta em concepção geral desse subgênero. Por seu desbravamento territorial, poderia ser um western, mas as suas incursões dramáticas mostram um desbravamento muito além do territorial, importando-se mais com a alma humana e os conflitos pessoais do que a máquina burocrática de problemas em torno. Já pelo caráter essencial de seu enredo, poderia ser um filme policial, mas o crime aqui recebe uma visão diferente dos dramas policiais comuns, de modo que uma classificação exata para a obra seria, no mínimo, incompleta.

Trazendo, portanto, esse arco de possibilidade de gêneros, o diretor explora ainda um outro lado da moeda: a cara masculina. Demora mais de uma hora para que a primeira mulher apareça na tela, e quando isso acontece, temos uma das cenas mais deslumbrantes e inesperadas do cinema, especialmente por se tratar de um espaço até então masculino e em um momento de esgotamento físico e mental dos personagens.

Todavia, antes dessa revelação quase angelical de uma bela garota servindo chá para homens recém acordados e embasbacados com aquela delicada presença na sala, o roteiro acompanha esse mesmo grupo pelo território turco, tentando achar o local onde um homem morto havia sido sepultado. Um médico legista, um promotor, um grupo de policiais responsáveis pelo caso, alguns soldados e dois coveiros fazem parte da comitiva. Eles aparecem pela primeira vez no horizonte numa composição belíssima do fotógrafo Gökhan Tiryaki (Climas3 Macacos), ainda quando o sol se põe. A ação que se desenrolará durante toda a noite e a madrugada é simplesmente irretocável.

Como o foco de Ceylan não é desvendar o crime e sim dissecar sentimentos, motivações e bastidores dos profissionais que trabalham na promotoria ou na polícia – colocando à distância os dois acusados de cometerem o crime -, o tempo é lento, quase como se estivéssemos companhando in loco o desenrolar dos fatos. Mas durante todos os eventos ocorridos à noite, não temos um único incômodo em relação ao tempo. A montagem e o elenco espetacular seguram perfeitamente o espectador, ligando-o à trama e não permitindo um esgotamento de sua vontade ou atenção.

O foco muda sensivelmente na “segunda parte” da história, quando a busca acaba, a exumação e as primeiras observações são feitas e a autópsia está para acontecer. A chegada da comitiva ao hospital, a manifestação dos populares, o diálogo final do médico com o promotor e a autópsia concentram mais incômodos do que todo o restante do filme (e esses são os 45 minutos finais!), incômodos que trazem uma maior desconexão dos eventos porque o grupo se separa e temos apenas pequenos acontecimentos relacionados ao caso (centrados principalmente no doutor, que se torna uma espécie de guia da história daí pra frente). O desfecho é incômodo não pelo que traz, mas porque a atitude do personagem é um misto de enigma e incompreensão, tanto para ele quanto para o espectador.

À parte esses acontecimentos da reta final, Era Um Vez na Anatólia é um filme espetacular, muito bem dirigido e com atuações maravilhosas. O incômodo final que apontei no parágrafo acima é, obviamente, pessoal (não sem justificativa técnica, como apontei, mas mesmo assim pessoal), de modo que podem não incomodar outros espectadores, que verão o que considero um “desvio dramático”, um acerto do diretor. De qualquer forma, e a despeito da divergência quanto a reta final, esta é uma obra para se aproveitar com atenção e observação plena. Realismo e humanismo são os ingredientes principais da história, cuja conclusão é entregue ao público em uma bandeja de angústia e dúvida. Não há beleza ou concessões, apenas a realidade de um conto de fadas para adultos, o “era uma vez” mais frio e desiludido dos últimos tempos.

Era Uma Vez na Anatólia (Bir zamanlar Anadolu’da) – Turquia, Bósnia Herzegovina, 2011
Direção: Nuri Bilge Ceylan
Roteiro: Nuri Bilge Ceylan, Ebru Ceylan, Ercan Kesal
Elenco: Muhammet Uzuner, Yilmaz Erdogan, Taner Birsel, Ahmet Mümtaz Taylan, Firat Tanis, Ercan Kesal, Erol Erarslan, Ugur Aslanoglu, Murat Kiliç, Safak Karali, Emre Sen
Duração: 157 min.

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