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Crítica | Era Uma Vez um Gênio

Uma reflexão sobre contadores de história.

por Fernando Campos
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Antes do surgimento da ciência, as histórias desempenhavam um papel ainda mais importante socialmente, servindo como instrumento para que o homem tentasse entender o seu redor. Assim, surgiram diferentes mitologias, como a nórdica, grega, egípcia, entre outras. Cada Deus representando um sentimento ou fenômeno da natureza. No entanto, como é citado durante Era Uma Vez um Gênio, a partir do momento que questões complexas da vida receberam explicações realistas dos cientistas, as histórias perderam o caráter boa parte do caráter explicativo e passaram a funcionar como metáforas. Hoje, o papel dos contos é evocar sentimentos, sem necessariamente precisar apelar para a fé. A partir desse conceito, o diretor George Miller questiona em seu novo trabalho: quais valores as grandes histórias atuais trazem?

Em Era Uma Vez um Gênio, acompanhamos a Dra. Alithea Binnie (Tilda Swinton), que encontra uma lâmpada mágica durante uma viagem para Istambul. Após abrir o objeto, ela se depara com um “djinn” (Idris Elba), que concede três desejos para a mulher. Preocupada com as consequências devastadoras que pedidos irracionais podem acarretar, a doutora reluta em atender o gênio, fazendo a criatura tentar convencê-la e também seduzi-la.

Durante o questionamento sobre o papel das histórias, realizado em uma apresentação da Dra Alithea no primeiro ato, Miller mostra imagens de personagens da Marvel e DC Comics. Goste ou não, esses “heróis” são responsáveis por mobilizar o imaginário popular atualmente. Como o próprio realizador comentou sobre esses filmes em uma entrevista coletiva em Cannes, “eles ecoam do passado”; portanto, o apego das pessoas por mitologias se expressa atualmente através das grandes audiências do gênero de herói. Nesse cenário, em Era Uma Vez um Gênio, Miller relembra que existem outras formas e temas para contadores de histórias se expressarem. O uso contínuo da narração em off, adotado pelo roteiro, evidencia como a intenção do diretor aqui não se resume a construir uma fábula, mas refletir sobre o próprio papel do contador de histórias e a importância da diversidade para provocar o público de diferentes formas. Como Alithea diz para o gênio, “através das histórias eu aprendi a experimentar diferentes sentimentos”.

Veja, Miller não busca invalidar a mitologia atual ou colocá-la como uma arte menor, mas sim promover tipos de fábulas diferentes. Como Tilda Swinton disse na mesma entrevista em Cannes, “a disseminação de mitos antigos não é um problema. O perigo é quando temos apenas uma história. […] Quando as pessoas se acostumam a ouvir apenas um tipo de história, isso fecha os olhos para outras possibilidades”.

Em meio a uma série de filmes higienizados, em que os personagens se comportam como bonecos, sem impulsos realmente humanos, Era Uma Vez um Gênio funciona quase que como uma coletânea de contos sobre desejo, todos conectados pelo djinn. O que conecta cada história são os vários tipos de amores: a paixão do gênio pela rainha de Sheba; o amor platônico de Gülten (Ece Yüksel) pelo príncipe; o apreço da jovem cientista por sua liberdade; e, por fim, o sentimento de Alithea por histórias. Aliás, a paixão da protagonista por djinn surge justamente porque ele se coloca como um contador de histórias. Ele quebra o pensamento racional da mulher, mostrando como ouvir histórias é sobre sentir, independente do meio que ele é contada

Miller ainda nos provoca com uma quantidade considerável de nudez e sexo na obra, destoando de qualquer obra de grande orçamento atual e remetendo justamente a abordagem sobre desejo e impulsividade. Também ajuda na aura romântica da película a trilha de Junkie XL, que prioriza os instrumentos de corda para transmitir emotividade, mas também o lado trágico que cada paixão pode resultar. Já a fotografia opta por vários travellings para criar não só dinamismo, uma marca já registrada do fotógrafo John Seale, mas para criar a sensação de ambientes instáveis. São os personagens que fazem o ambiente de acordo com seus impulsos e não o contrário. O ponto negativo fica a cargo da edição, tornando-se cansativa no segundo ato, especialmente por não conseguir lidar com as longas narrações. 

Outro ponto da obra que desagrada são as tentativas de se explicar, como as desnecessárias citações sobre ondas eletromagnéticas. Justamente por ser uma fábula e fugir de realismos, não era necessário introduzir longos diálogos sobre questões científicas ou querer argumentar sobre o que compõe geneticamente a criatura. No subtexto, essa estratégia até serve para representar como as pessoas nem sempre conseguem assimilar grandes histórias em meio a tanta aceleração e conectividade, mas ainda assim destoa da questão central aqui: o desejo.

Porém, ao entendermos a metáfora de Era Uma Vez um Gênio, a sensação final é positiva. Mais do que mostrar figuras com comportamentos irreais, talvez seja momento de refletir sobre nossa impulsividade. Sobre nossas vontades. A arte é a expressão do que está dentro de nós. Ou a vivência daquilo que não podemos experimentar. O contador de história expressa seus desejos e nós dialogamos com ele.

Era Uma Vez um Gênio (Three Thousand Years of Longing) – EUA e Austrália, 2022
Direção: George Miller
Roteiro: George Miller, Augusta Miller
Elenco: Tilda Swinton, Idris Elba, Ece Yüksel, Zerrin Tekindor, Erdil Yaşaroğlu, Kaan Guldur, David Collins, Alyla Browne, Nicola Mouawad, Angie Tricker, Hayley Gia Hughes, Jason Jago, Seyithan Özdemir, Burcu Gölgedar, Berk Ozturk, Ogulcan Arman Uslu, Pia Thunderbolt, Matteo Bocelli, Lachy Hulme, Megan Gale
Duração: 108 min

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