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Crítica | Ervas Daninhas

Romances esquisitos.

por Fernando JG
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Alain Resnais estava próximo dos seus noventa anos quando produziu o Ervas Daninhas. De fato, preciso reconhecer que há um fôlego gigantesco neste filme e me surpreende, por exemplo, o vigor que há em um dos planos-sequência utilizados ao longo do enredo – uma tomada curta, claro, quando o personagem-stalker está atravessando um corredor, mas que não deixa de ser cheia de disposição. Não só isso, mas também a jovialidade em que é trabalhada a fábula fílmica, que, embora trate de temas amorosos numa meia-idade próxima à velhice, ocorre com um tom amabilíssimo, quase como um conto de primeiro amor, sobretudo porque a atitude dos personagens enlaçados pela trama se assemelha muito às obsessões das paixões juvenis: envio de cartas, ligações obsessivas, embriaguez numa noite qualquer, sujeitos stalkers, fugas, medos, sentimentos de apreensão, frio na barriga, entre outros pontos que evidenciam que mesmo com a passagem do tempo talvez a ideia de paixão e encontro despertem sempre os mesmos afetos. Será que algumas coisas nunca mudam? Me perguntava isso enquanto assistia à adaptação que Resnais, com seus 86 anos de idade, fazia do romance de Christian Gailly L’incident

Com um narrador em terceira pessoa relatando de modo impessoal o percurso dramático da película ao mesmo tempo em que este mesmo melancólico narrador se mescla com uma primeira pessoa dando vazão aos pensamentos e sentimentos dos nossos heróis problemáticos (voice-off), o cineasta apresenta Marguerite Muir (Sabine Azéma) que acaba de ser assaltada enquanto caminha na rua. Como quem não quer nada, nas cenas adiante, Georges Palet (André Dussollier) encontra uma carteira vazia no chão e entrega à polícia que localiza a dona. Imediatamente, o objeto se torna uma ponte importante que fará a ligação afetiva entre os personagens. A ideia do encontro amoroso se dá aqui: quando descobre que a dona é Marguerite, uma mulher, Georges não consegue deixar de imaginar como ela se assemelha; ao passo que, quando comunicada que sua carteira fora achada, nossa heroína tenta a todo custo imaginar as feições de quem achara o seu objeto, chegando a perguntar ao policial quais as características físicas deste homem anônimo. Indiretamente, dois sujeitos que querem a mesma coisa se atravessam.

Com um ritmo leve e descontraído, a película vai se fazendo aos poucos, sem muita pressa em entregar os fatos, que se apresentam de maneira oblíqua a nós. Tem uma forte característica investigativa, em que as coisas vão se desenvolvendo lentamente, entregando pistas, tocando as questões nas bordas até que enfim cheguemos naquele ponto em que o nó narrativo se mostra com todas as suas faces. Quero dizer, nossos heróis não se conhecem e por muito tempo apenas se comunicam por telefone (porque ele procurou o nome de Marguerite na lista telefônica, naqueles livros gigantescos que não existem mais e que constam os nomes de todo mundo que tem linha telefônica em casa) e ficam um tentando alcançar o outro e desvendar o mistério de “quem é a pessoa do outro lado?”. Pensando bem, é um whodunnit imperfeito que vai instigando a curiosidade do público e de seus próprios heróis. 

Embora eu tenha chamado a atenção positivamente para o argumento da trama, que é um drama-romântico bem graciosinho, acho que muitas das vezes Resnais perde a mão forçando um encontro que, quando analisado, é bem inconsistente, convenhamos. Muito da obsessão do personagem-stalker fica sem sentido e mesmo inverossímil numa realidade fora das telas. Os sentimentos mobilizados têm aparência de verdade, mas o curso do enredo vai misturando um realismo meio torto com doses de obliquidade surrealista durante o trajeto do protagonista, fazendo com que a trama soe confusa em algumas passagens. 

Mas a arte é isso: fazer coisas a princípio impossíveis parecerem verossímeis. Neste contexto, o filme adota um ar de paródia romântica e mesmo aposta em situações cômicas para lidar com a inconsistência de algumas situações absurdas. Típico. O gênero cômico é o mais apropriado para lidar com absurdos sem parecer ridículo. Pessoalmente, acho que a meia-idade avançada, mas sobretudo a velhice, tem um tom perfeito para lidar com situações cotidianas num tom de comédia e paródia. Quem percebe que isso dá certo e utiliza desta faixa-etária para produzir coisas deste tipo é Samuel Beckett em Fim de Partida. A juventude tem aptidão para ser trágica, a adultez, melancólica, a velhice, tragicômica.

Solúvel e absolutamente inesperado, a dramédia-stalker de Alain Resnais consiste em transformar situações simples do cotidiano em algo cheio de vida e esperança, trabalhando a colisão acidental entre seus personagens como uma força-motriz que os fazem revigorar suas vidas tediosas. De uma hora para a outra, as coisas acontecem, sem se programar, esperar ou mesmo buscar por esse algo mágico que converte a sombra em luz. Les Herbes Folles se aventura nas incertezas de seus heróis problemáticos e se traduz na forma de um enredo incerto e cheio de vagueza na conclusão, mas entrega um roteiro pleno de energia, com personagens distintos e um sentimentalismo passional que flutua num estilo naturalmente dócil e aconchegante.

Ervas Daninhas (Les Herbes Folles, França, 2009)
Direção: Alain Resnais
Roteiro: Alain Resnais, Laurent Herbiet (baseado no romance L’incident de Christian Gailly)
Elenco: André Dussollier, Sabine Azéma, Anne Consigny, Emmanuelle Devos, Mathieu Amalric, Michel Vuillermoz, Sara Forestier, Nicolas Duvauchelle, Vladimir Consigny, Roger Pierre, Édouard Baer
Duração: 104 min. 

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