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Crítica | Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver

por Luiz Santiago
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Mais contido e melhor desenvolvido, sob diversos aspectos, que À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964), Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1967) faz uma viagem ainda mais tenebrosa que seu antecessor, lidando com os aspectos fantasiosos e diabólicos que cercam o personagem Zé do Caixão — aqui referido pela primeira vez pelo seu nome verdadeiro, Josefel Zanatas — e mergulhando de vez na fixação simbólica (e quase cômica, para ser sincero) de sua defesa sobre o sangue, para ele, elemento da vida que deve ser preservado através da gestação de uma criança, empreitada que mais uma vez tenta levar a cabo, agora sequestrando diversas mulheres da cidade para escolher uma de corpo e espírito perfeitos para gerar “O Imortal”, algo que o roteiro, co-escrito por Marins, dá a entender que seja [uma espécie de] Anticristo.

O início da obra já conta com o enriquecimento do mito em torno do agente funerário, com uma longa introdução, cheia de pequenas ações que introduzem (e desviam parcialmente) o espectador do filme, trazendo cenas de À Meia-Noite… e estabelecendo que, apesar do choque e da perseguição feita pela Procissão dos Mortos, Josefel ainda está vivo. É como se o próprio Inferno rejeitasse o personagem. E não é para menos. Embora use de menos violência gráfica e muito mais violência psicológica ou de outra categoria (aranhas, cobras, afogamento de homens no pântano, enforcamento fora do quadro e outros modos menos exibicionistas de matar), o filme ainda nos traz um personagem profundamente desligado de todo senso de humanidade possível, atribuindo seus assassinatos à ciência, como se todo o seu experimento pessoal para gerar um filho pudesse ser enquadrado nessa categoria.

A obra caminha para nuances de Exploitation e, querendo ou não, encarna em Zé do Caixão uma grande crítica social, pretendida apenas indiretamente pelo diretor, na exposição de uma categoria de pessoas e de uma junção de pensamentos em voga no Brasil dos anos 1960 — mas que permanecem até hoje. Podemos citar aqui a visão da “função da mulher” — e alguns até utilizam um elemento religioso/cristão para justificar a fala — que é ter filhos… e que só isto fará com que ela seja completa, feliz e, de fato, mulher; de que o homem precisa passar adiante o seu sangue para garantir o “nome e a família“… isso implica que ele obrigatoriamente tenha que ser pai de um menino; e diversos outros cacoetes e elementos de hipocrisia social como os homens que maltratam mulher e filhos em casa e posam de justiceiros sociais e vozes da verdade, moral e bons costumes em público; ou pessoas que detém algum tipo de poder e só fazem algo que realmente beneficie a população quando sua vida é afetada diretamente pelos problemas que ouviu o tempo inteiro, mas que sempre ignorou.

Claro que por ser um filme de gênero e por elencar uma presença tão peculiar quanto Zé do Caixão, estes elementos são exagerados e embebidos em um ar de fantasia e marcas de horror que supostamente descaracterizariam tais críticas, mas não é bem assim. Como disse antes, a intenção do cineasta ia justamente pelo caminho do medo, mas sua visão da camada maléfica da sociedade não está aqui à toa. Seu olhar mais crítico nesse aspecto, porém, viria apenas em 1971, no ótimo Finis Hominis, onde ele propositalmente fez um filme inteiro sobre a hipocrisia da sociedade e sobre a profusão de falsos profetas dentro de diversos ramos religiosos. Em Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, a sociedade para ele é apenas espelhada, enquanto o mal cresce, lida com novas ameaças — agora com a maldição de uma mulher grávida morta por Zé do Caixão — e, em uma das cenas mais criativas de todo o filme e talvez de todo o cinema brasileiro daquele momento da década de 60, desce aos infernos.

Penso que todo espectador se espanta quando chega na sequência do Lugar de Tormento. Primeiro, porque temos uma inteligentíssima opção do diretor em usar cor apenas ali, enquanto as cenas na Terra são em preto e branco. Depois, pelo próprio trabalho de cor em si, aliado a uma direção de arte criativa às raias da impossibilidade, fazendo do baixo orçamento apenas um caminho para se conseguir elementos visuais chamativos da maneira mais improvável possível. E o melhor de tudo é que funciona muito bem. Aqui, não só estamos falando da melhor sequência da película mas também de um dos melhores momentos da direção de Mojica, com bom aproveitamento do espaço e uso preciso da movimentação da câmera, tendo o produto final bem tratado na mesa de montagem. Uma pena que  mesmo critério não foi utilizado na parte inicial da obra, com a longa e chateante cena das aranhas, ou mesmo com as cenas-ponte que não servem para muita coisa, como o pôquer entre Zé do Caixão e Truncador (Antonio Fracari) ou os primeiro e inúteis ajuntamentos da população local para ir atrás de Zé do Caixão. Este aspecto só funciona na eletrizante cena final.

A temática do filho e do sangue se repetem aqui, mas a ameaça espiritual e o tipo de maldade encenadas pelo famoso agente funerário são outras. Há muito mais aproximação com o “Terror B” americano — temos até um “laboratório” aqui! — e muito mais flashes da sociedade brasileira da época fortalecendo o roteiro. Claro que não é o tempo inteiro que isso se marca na obra ou que ela organiza bem todos os pesos dramáticos. Mas no todo, o filme se sustenta no lado positivo, terminando com uma sugestão interessante sobre o destino de Zé do Caixão e subindo (ou descendo?) mais um degrau na lista de obras interessantemente malditas do nosso cinema.

Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (Brasil, 1967)
Direção: José Mojica Marins
Roteiro: Aldenora De Sa Porto, José Mojica Marins
Elenco: José Mojica Marins, Tina Wohlers, Nadia Freitas, Antonio Fracari, Jose Lobo, Esmeralda Ruchel, Paula Ramos, Tania Mendonça
Duração: 108 min.

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