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Crítica | Estrada da Vida (1980)

por César Barzine
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Estrada da Vida é um trabalho tosco, vulgar, simplista, popularesco e, por isso mesmo, uma obra-prima! Essa cinebiografia da dupla Milionário & José Rico acaba sendo, seguindo os moldes dos músicos, um modão de filme; e parafraseando ele próprio, trata-se de um “filme simples e que o povo gosta”. Nelson Pereira dos Santos escancara aqui uma inclinação ao cinema comercial abandonando pretensões a um formato mais cult e se entregando loucamente ao pop. Mas nem por isso o seu longa perde alguma veia autoral, ele encontra justamente na abordagem popular um norte para uma obra original e razoavelmente densa dentro de seu espectro de comédias subdesenvolvidas. Ao público cinéfilo aberto a comédia escrachada completamente desmiolada, mas conduzida com um toque mágico que cria todo um encanto por conta disso, Estrada da Vida é um verdadeiro espetáculo na sua simplicidade e em seu andar desengonçado.

Aqui, Nelson Pereira dos Santos demonstra-se alheio a todos os aspectos que formaram a sua filmografia. Não existe o caráter social de Rio, 40 Graus e Tenda dos Milagres; muito menos o teor contemplativo de Vidas Secas e Como Era Gostoso O Meu Francês; como também inexiste o espírito libertário de Mandacaru Vermelho e El Justicero. Estrada da Vida é a superação de toda a carreira de Nelson, a antítese de si mesmo. Um longa marcado pela recusa de qualquer apelo modernista, mas completamente dotado de diversos maneirismos que constroem uma obra cult ao lado de sua essência “anticult”.

A premissa é simplesmente a história biográfica de uma famosa dupla sertaneja, o que significa o caminho deles do anonimato ao estrelato, tendo sempre em mente o ideal de sucesso e glória como destino final. Até lá, há a tal “estrada da vida”: o insucesso e o desprezo alheio, a pobreza e a insegurança, os afetos e a esperança. Um caminho intenso, tão longo e tão curto ao mesmo tempo, onde os espaços de um lugar para o outro se movem da forma mais direta possível. Num desenvolvimento bem dinâmico, todo tipo de relação, movimento e diálogo é extremamente veloz. O roteiro abandona qualquer verossimilhança, tendo toda lógica de sociabilidade e burocracia subvertida, restando a impressão de que os personagens fazem a vida adulta parecer uma brincadeira de criança.

Antes dos membros da dupla se conhecerem, um deles se aproxima de outro homem e pergunta onde tem emprego, logo ele diz que é cantor, e o outro sujeito curiosamente fala do “Hotel dos Artistas”. Neste mesmo lugar e somente numa mesma sequência, o homem recém-chegado conhece o seu parceiro de dupla, o seu empresário e ainda é contratado para fazer um show. Tudo isso da forma mais enxuta e frenética possível, com uma “pobreza” de linguagem e uma execução que causa a sensação de amadorismo. Mas tendo essa abordagem sendo sempre carregada de forma autoconsciente, invertendo tais elementos em prol do filme. O que remete a semelhanças com O Homem do Sputnik, uma comédia pastelão totalmente caricata e beirando ao ridículo – mas que, justamente graças a isso, consegue extrair a sua força e cativar o público. 

Diálogos pobres, saltos abruptos, ausência de um desenvolvimento orgânico e atuações quase que risíveis; tudo isso constrói uma obra que vai direto ao ponto, sem uma construção linear – um filme em que cada ação parece estar pela metade, ou até bem menos do que isso. E todos esses aspectos que aparentam ser algo negativo são, na verdade, o grande valor de Estrada da Vida. Nelson cobre todo esse despreparo com um senso de ironia que desperta enorme simpatia ao público, levando ele a um divertimento intenso e, para um olhar mais atento, proporciona um trabalho conceitual que inverte a noção de sintetizar a vida de alguém em uma obra. Temos aqui um longa preenchido não por por elipses atos ou imotivados, mas por uma abordagem completamente seca e rústica – que fazem do curto caminho de um lugar para o outro uma enorme estrada vida.

Em seus momentos iniciais, já se escancara essa noção de anarquia promovida. Completamente destrambelhado no lado técnico, e unindo isso a sua temática popular, a expectativa com o restante do longa não é das melhores. A segunda cena é dinâmica demais, numa velocidade que, junto com os cortes completamente abruptos, resultam numa experiência incômoda pela sua tosquice em não deixar o ritmo mais fluido a partir de um desenvolvimento mais lento. 

Porém, Nelson Pereira faz jus ao seu nome, e inverte todo o lado formal do filme em seu excelente trabalho de decupagem. A fluidez que o longa necessitava é atingida pelos movimentos frontais e verticais com os quais a câmera é conduzida. O uso de zoom-in é excelente, dando a aproximação precisa para um melhor contato cênico com os personagens fora de suas apresentações musicais. E indo dessa individualidade para um retrato coletivo, Nelson explora o público e os espaços que os cercam apresentando o brilho daquele evento alegre e popular. As massas aclamando, os rodeios, milhares de pessoas vendo e ouvindo tais músicas enquanto os rostos delas transmitem a alegria do som caipira de forma passageira, capturando um vasto público e demonstrando os sentimentos de toda aquela plateia que parece possuir uma mesma alma.

E é claro que não poderia faltar espaço para o humor extraído da própria dupla de cantores. A tosqueira do longa do Nelson se faz também no uso constante do burlesco em situações físicas, sendo a bagunça algo totalmente onipresente, como se estivéssemos numa versão caipira dos Irmãos Marx. Já o encaixe dos números musicais no filme são perfeitos, interligando isso como uma forma de afirmar a determinação e as aspirações da dupla ou para simplesmente exibir os seus êxitos no caso de apresentações públicas. Em certas cenas, o som surge do nada, chama a atenção de várias pessoas em volta, e transmitem novamente o tom contagiante que o trabalho deles cria. Ao lado dessa carreira musical, há os romances que vivem cada um deles, assim como também há um desfecho inesperado na vida dos dois. Eles se separam, cada um ao seu caminho, se sentindo completos por tudo que conquistaram. E diante do humor exaltado do filme, das intrigas e parcerias, dos altos e baixos e da amizade cultivada pelo sonho de um dia chegar ao topo, Estrada da Vida se apresenta como um curto e direto caminho a ser percorrido; e por conta disso, o filme nos dá consciência do quão intenso e belo este caminho é.

Estrada da Vida – Brasil, 1980
Direção: Nelson Pereira dos Santos
Roteiro: Chico de Assis
Elenco: Milionário, José Rico, Nádia Lippi, Sílvia Leblon, Turíbio Ruiz, Wanderley Martins, Marthus Mathias, José Raimundo, Manfredo Bahia, Raimundo Silva, José Marinho
Duração: 104 minutos.

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