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Crítica | Eu e Meu Avô Nihonjin

As possibilidades de uma adaptação que não fica acorrentada ao material fonte.

por Ritter Fan
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Apesar de eu não gostar de traçar comparações mais do que breves entre material fonte e sua adaptação, aproveitarei a oportunidade de ter lido Nihonjin, supreendentemente sensacional livro que inspirou a animação Eu e Meu Avô Nihonjin, objeto da presente análise, para abordar algo que muitos consideram essencial em adaptações: a fidelidade. Trata-se, diria, de uma suposta qualidade que, para mim, na verdade, é muito mais superestimada do que próximo de necessária. Adaptações não precisam se agarrar desesperadamente às suas bases e muitas das melhores que existem por aí são de alta qualidade justamente por compreenderem isso e terem a coragem de se desvencilhar dos grilhões e levar para outras mídias obras transformativas, que agregam às originais e que, por vezes, até as melhoram, por mais que os puristas torçam o nariz para esse conceito. E não é nem o caso de não haver adaptações excelentes que são verdadeiras transliterações, pois há várias, mas é importante ter a mente aberta para quando, pelas mais variadas razões, alterações, concessões e amálgamas precisam ser feitas.

A novela escrita pelo romancista brasileiro de ascendência japonesa Oscar Nakasato é uma obra que engana o leitor que apenas passar brevemente os olhos por ela. Seu tamanho diminuto e a capa da republicação recente levam aqueles que desobedecem o ditado e julgam livros pela capa (e eu já fui culpado desse pecado várias vezes, sendo sincero) a concluir que se trata de uma historinha básica qualquer, do tipo que pode ser lido em uma sentada e esquecido depois. Mas Nihonjin é bem mais do que um passeio pela memória sobre a imigração japonesa no Brasil no começo do século XX, pois seu autor não se esquiva em momento algum – ainda que com elegância e uso cirúrgico das palavras – de abordar assuntos pesados que gravitam ao redor do preconceito racial, xenofobia, posição da mulher na sociedade, exploração de mão de obra barata e nacionalismo exacerbado, o que transforma seu personagem central, Hideo, o avô do narrador, em alguém com quem o leitor não deve, em circunstâncias normais, criar empatia, o que por si só é um ato corajoso de Nakasato.

Em sua adaptação para o audiovisual, Rita Catunda compreendeu muito claramente o que Nakasato escreveu e isso fica claro nas entrelinhas de seu roteiro. No entanto, seu objetivo era escrever uma obra infantojuvenil de cunho até mesmo educacional sobre a imigração japonesa no Brasil, o que a obrigou a encarar o material base com olhos de lince para suavizar a abordagem mais sóbria – e por vezes sombria – do autor do romance. Seria fácil e tentador que o resultado não passasse de um texto que pouco ou nada se conecta com a obra original para além dos nomes dos personagens, mas a roteirista conseguiu extrair a essência de Nihonjin e passá-lo por um inteligente filtro que aninhou a obra na categoria de adaptação consciente, bem estruturada que, mesmo pecando aqui e ali, como abordarei em breve, efetivamente transforma o livro para adultos em um filme para crianças que, porém, não é do tipo “emburrecedor”, que subestima os pequenos.

No lugar de reminiscências sobre o passado a partir de um narrador adulto como no livro, Rita Catunda insere esse narrador diretamente no filme, como um jovem personagem central que, a partir de um dever de casa escolar sobre antepassados, catalisa a viagem pelas memórias de seu avô e a descoberta que ele tem um tio de quem ele nunca ouviu falar, o que imediatamente desperta sua curiosidade. O pequeno Noboru (Pietro Takeda) relutantemente tem diversas conversas com seu avô Hideo (Ken Kaneko), que não só não gosta de falar do passado, como é ranzinza e observador estrito das tradições nipônicas, algo que é imediatamente identificável pelo espectador como um artifício clássico para, aos poucos, o longa derreter as barreiras entre gerações, com os dois “lados” naturalmente encontrando-se no meio do caminho. Chega a ser uma surpresa constatar que o roteiro mantém todas as linhas narrativas do livro, com exceção de uma relacionada com uma das filhas de Hideo que começa a namorar com um gaijin, mesmo que tudo ganhe uma abordagem naturalmente mais leve que acaba idealizando a figura do avô e usando o “mistério do tio” como o ponto focal. Como exemplos dessa suavização, vale mencionar, primeiro, a discordância de um jovem Hideo na amizade de sua primeira esposa com uma mulher negra no cafezal onde trabalham, algo que acontece, mas que apenas nas entrelinhas fica clara a verdadeira razão para isso e, também, a visão nacionalista do avô que se recusa a aceitar que o Japão foi derrotado na Segunda Guerra Mundial, algo que, no livro, o leva a fazer parte de uma organização radical que seque é mencionada na animação.

A produção acertou em cheio em não usar o tão desgastado “estilo anime”, dando à obra, ao revés, uma aparência muito própria e belíssima, inspirada na arte de Oscar Oiwa, por vezes até mesmo parecendo algo retirado diretamente dos quadros do holandês Vincent Van Gogh. A animação 2D desenhada à mão, uma raridade nos dias irritantemente computadorizados de hoje, também merece aplausos, com personagens expressivos, cenários hipnotizantes – o começo no porto de Kobe é particularmente lindíssimo! – e uma fluidez invejável dentro das limitações autoimpostas pela diretora Celia Catunda. Sim, por vezes os personagens parecem flutuar quando estão em movimento e o trabalho de voz nem sempre funciona em relação às imagens, mas esses são detalhes menores em uma produção em que é visível o cuidado em cada quadro que não só tem identidade própria, como não deixa de homenagear a cultura japonesa, seja ela a tradicional ou a “tropicalizada”, outro objetivo do longa, vale dizer.

O que acaba não funcionando dentro da construção narrativa é o final, que parece forçado demais de maneira a entregar um encerramento excessivamente feliz. Na verdade, o problema não repousa na felicidade do final em si, mas sim no caminho apressado que os minutos finais seguem para chegar até ele, caminho esse que pega atalhos demais e que se vale de suprema conveniência para funcionar e só realmente funciona se o espectador decidir fechar os olhos para os problemas. A impressão que dá é que algo foi bruscamente cortado do roteiro, uma ponte narrativa que levasse mais fluidamente do ponto em que a história se encontrava até seu derradeiro momento. Causa incômodo, mas, por outro lado, não subtrai demais da experiência, o que é sempre uma boa notícia.

Eu e Meu Avô Ninonjin não só é um ótimo exemplar da animação nacional para os cinemas, que definitivamente merece bem mais atenção do que tem hoje em dia, como é uma emocionante e educativa viagem pelas memórias de uma era complicada tanto para o Japão quanto para o Brasil que promove um emocionante encontro cultural. Mas o filme consegue ir além e também serve para mostrar as possibilidades de adaptações que se recusam a se limitar ao que o material fonte oferece, por melhor que ele possa ser.

Eu e Meu Avô Nihonjin (Brasil, 2025)
Direção: Celia Catunda
Roteiro: Rita Catunda (baseado em obra de Oscar Nakasato)
Elenco: Pietro Takeda, Ken Kaneko
Duração: 84 min.

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