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Crítica | Eu Me Importo

por Laisa Lima
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Enganar é uma arte. Em momentos oportunos, essa manifestação “artística” aflora a ponto de se tornar quase um dom destinado a pouquíssimos agraciados. Como prova irrefutável, temos a história real de Frank (Leonardo DiCaprio) em Prenda-me se For Capaz (2002), mentiroso profissional que conseguiu se passar por outros profissionais, alguns até de alto escalão. Inclusive, os que estão por cima também ludibriam: a troca do pobre Valentine (Eddie Murphy) com a vida do milionário Louis Winthorpe lll (Dan Aykroyd)  é um jogo de ilusão em Trocando as Bolas (1983). Passando para os dias atuais, a bola da vez é a golpista Marla (Rosamund Pike) em Eu Me Importo (2020), de J Blakeson

Se há a existência de “vilões” nesse longa-metragem, este título é compartilhado. Como linha de frente, Marla (Rosamund Pike) é apresentada. Fria, calculista e cruel, a moça mantém uma vida confortável tutelando idosos que, às vezes, não necessitam de tutela. Este é o caso de Jennifer Peterson (Dianne Wiest). O que Marla não sabia, porém, é que a senhora vinha tanto com valiosos bens quanto com segredos perigosos, para além do controle da renomada guardiã, e que iriam atrapalhar a continuidade de sua luxuosa realidade. O cargo de antagonista da trama, então, se divide entre, por incrível que pareça, vítimas e culpados, quem faz a ação e quem a sofre, colocando em pé de igualdade a maioria dos personagens do filme. Visto isso, o que os diferencia? 

A vilania, aqui, está presente de distintas formas. Em Marla, por exemplo, é possível enxergar um arquétipo moderno do cinema. Com uma frieza escancarada, a mulher traz à tona uma bem sucedida carreira montada em cima de um crime amparado pela justiça, levando à constatação de que a crueldade cometida ao trancafiar indivíduos da terceira idade em asilos teria que ter uma reprodutora igualmente insensível. Para equiparar-se a Marla, outras peças vão sendo adicionadas, como o mafioso Roman Lunyov (Peter Dinklage), e, conforme o brio dos que estão no filme são remexidos, a questão do egocentrismo desponta como o principal estímulo para a tomada de certas atitudes, a maioria fora do cerco da moralidade, fazendo com que as mesmas não sejam discutíveis em seus fomentos, e sim em suas execuções.

Por intermédio de seu conteúdo, Eu Me Importo apresenta uma visão pessimista do american way of life, cujo, segundo a obra, pode levar à obtenção de uma boa vida galgando sob inocentes ou sob um senso comum de honestidade, conceitos que, para àqueles personagens, não são úteis quando refere-se a uma vida em sociedade. Pelo contrário, o fator questionável na película não se mede discutindo o certo ou errado na personalidade de seus integrantes, já que os mesmos exibem cascas e interiores semelhantes, sendo, por isso, a veracidade dos fatos e a inventividade com que são concretizados, o motor primordial para a escolha do “mal” ou do “menos pior”. A torcida do público pode até se encaminhar pela direção do vitimizado ou do desfavorecido em determinada situação, mas a sensação de impunidade é provável que passe longe do desejo do espectador.   

E, se os aproveitadores conseguem triunfar, a chancela do Estado americano pode ser ressaltada e entra como mais uma crítica no longa-metragem. O roteiro, além de exaltar uma figura feminina tida como forte apesar dos pesares, tal qual Marla, em diálogos voltados para seu talento duvidoso na hora do convencimento e sua invejada subsistência em um meio predominantemente masculino; também é capaz de enojar quem ainda preza pela integridade. Apesar disso, algumas falas, forçadamente produzidas como imposições das noções pregadas no filme, são superficiais a ponto de não acrescentarem nem na trama nem na evolução das pessoas ali. Tais derrapadas permitem, entretanto, que a aparência não-real converse com a realidade da trama, confundindo o que é possível no mundo aqui fora e o que não é.

Convergente como um possível ponto de conexão, Rosamund Pike, igualmente em um molde de vilã dissimulada já exibido em filmes como Garota Exemplar (2014), resume o que uma mulher não pode ser – em uma noção coletiva – mas, ainda assim, é apta de ser realizada. Os dois lados dos sentimentos pela curadora, vagando em algum lugar entre a raiva e o instigamento, são mérito da interpretação de uma heroína ao avesso que ultrapassa o limite de ser digna de afetividade da audiência, mesmo que, em segredo, a torcida vá para ela. Quem ocuparia essa posição, todavia, seria a idosa Jennifer com, ao que tudo indicava, sua ingenuidade. Porém, com a chegada de um protótipo clichê de mafioso no cinema, Lunyov, essa inocência se transforma em um ar ardiloso, pondo o filme dentro de uma guerra na qual não há um lado bom. 

À vista disso, qual seria o tom ideal para uma analogia a uma quase distopia moderna? A estética de videoclipe apresentada desde o início do longa-metragem, com sua narração em off, frases impactantes e câmera lenta; as cores saturadas na imagem remetendo a uma típica história feliz, e um texto expositivo por vezes sarcástico e por vezes propositalmente hilariante, dão ao diretor J Blakeson a responsabilidade de contrabalancear o que ele mesmo se propõe a dizer. No início, o excesso não era um pecado, assim como a oscilação do exagerado para o real. Conforme a evolução do pretexto reflexivo e plástico da obra, a excentricidade dos ocorridos faz o cineasta perder a mão do necessário para a película se considerar uma variante de comédia ou de qualquer outro estilo que se enquadre na tentativa de uma despretensão visivelmente tendenciosa ao choque, a inconformação e, como item essencial, ao divertimento do espectador. Tal priorização pelo entretenimento não se sustenta ao exprimir sequências absurdas e até de menosprezo a percepção de quem assiste, emburrecendo o trabalho de Blakeson em si.

Eu Me Importo se afasta de qualquer decisão unânime sobre seu estilo, contendo desde um thriller dramático até um lazer bobinho, sem muita relevância. No entanto, a simbiose com tais concepções torna o filme instável e, ao mesmo tempo, fácil de se assistir. Isso porque, mesmo com a gravidade de sua temática, a estranha espirituosidade do longa-metragem faz adentrar, ainda que superficialmente, a mente de seres humanos que tornam o crime algo estratégico. E, por que não, leve. Isso não isenta a revolta para com os personagens e seus atos, porém, como os únicos com maior tempo em tela, é preciso que o costume com suas índoles seja absorvido. O aparecimento majoritário de “vilões” engrandece a mensagem construída pelo espectador por si só, que não tem o auxílio de boas almas e precisa entender o que, por trás daquela ironia, o filme tem como parecer. Sem algumas discrepantes situações, o que Eu Me Importo quer transmitir é: o mundo realmente é dos espertos. E no pior sentido da frase.    

Eu Me Importo (I Care a Lot – EUA, 2020)
Direção: J Blakeson
Roteiro: J Blakeson
Elenco: Rosamund Pike, Dianne Wiest, Peter Dinklage, Eiza González, Chris Messina, Alicia Witt, Anthony Hoang, Nicholas Logan, Macon Blair, Isiah Whitlock Jr., Damian Young, Ava Gaudet
Duração: 118 min.  

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