Alguns personagens da literatura e dos quadrinhos conseguem a proeza de falar mais alto do que qualquer outro ao seu redor e até mesmo do que a própria história em que está inserida. Na maioria das vezes, seus criadores começaram por eles e, então, partiram para erigir a plataforma em que eles são utilizados, resultando em uma simbiose perfeita entre personagem e história. Sherlock Holmes é um desses grandes personagens da literatura, assim como, nos quadrinhos, é o caso de Halo Jones, não que, claro, eu tenha certeza que seus respectivos autores começaram por eles, ainda que a desconfiança seja forte. Apesar de ser um convenção afirmar que o que importa é a história, tenho para mim que isso é relativo e, às vezes, o que importa mesmo é o personagem, seja ele protagonista ou antagonista, como no caso do Conde Drácula, por exemplo. A psiquiatra Eva Rojas, criada pelo quadrinista catalão Jordi Lafebre, é, sem dúvida alguma, uma dessas personagens que imediatamente arrebata o leitor do primeiro quadro em que ela aparece – andando na beira do telhado de um prédio com vista para a ainda inacabada Basílica da Sagrada Famíilia, em Barcelona – até o último, em que ela dorme no divã de seu terapeuta, como se a experiência de leitura tivesse sido um transe hipnótico.
Sexy, sexualmente liberada, desbocada, fumante, ocasionalmente chegada a drogas e quase sempre acompanhada de sua avó e suas duas tias em visões/alucinações que ela reconhece como tais, Eva, uma jovem loira, de cabelo curto e corpo esguio, começa Eu Sou o Seu Silêncio no consultório do barbudo Dr. Llull tentando reaver sua licença para praticar sua profissão e é a partir dessa sessão que, então, seu passado recente é desnudado, ainda que mais para nós, leitores, do que para o terapeuta que a resgata, desesperado, do telhado em que ela estava apenas passeando. E esse passado recente é movimentado, sofisticado e repleto de reviravoltas, pois Eva, aceitando o convite de sua amiga Penélope para passar dois dias com a família dela para a leitura de um testamento em vida da avó dela. Não é necessário ser nenhum detetive para perceber de imediato que essa família é extremamente abastada e que, como é comum acontecer nesse meio, repleta de interesses em franca oposição, todos eles tangenciando, de uma forma ou outra, o vil metal.
E também não é necessário ser detetive para notar que Eu Sou o Seu Silêncio é, em seu âmago, um polar, coloquialismo na língua francesa que designa “romances policiais”, com Eva passando a investigar a morte de um importante membro da família de sua amiga que acontece justamente durante o rito de leitura do testamento. O típico whodunnit que, porém, não é tão típico assim, então, entra em velocidade de cruzeiro, com o diferencial de que a investigadora é uma psiquiatra com sua própria carga de problemas e não alguém que remotamente tenha aptidão para ser detetive, pelo menos não em um primeiro momento, como ela própria vai percebendo na medida em que a trama ganha contornos cada vez mais complicados e por vezes até sinistros. No entanto, a atipicidade da história estão na forma como Lafebre a conduz, ou seja, muito menos preocupado com seus desdobramentos do que com Eva. Eva é, muito mais do que Hercule Poirot ou Philip Marlowe, a personagem central da história e não apenas como uma pseudo-detetive usando sua capacidade de “ler” as pessoas para desvendar o crime. O roteirista faz questão absoluta de contar a história de Eva, ainda que nunca deixe a trama detetivesca esmorecer.

Inteligentemente usando a sessão de terapia do Dr. Llull como uma forma de trazer a narrativa constantemente para tempo presente de forma que as ações de Eva nos dias anteriores ganhem contexto e possam ser “analisadas”, Lafebre encontra o exato ponto de equilíbrio que mantém o leitor engajado nos acontecimentos, sejam eles relativos à morte investigada, sejam concernentes apenas à protagonista. Tudo flui muito facilmente, com os confrontos de Eva com seu analista, com os diversos integrantes da família de sua amiga, com a detetive de polícia que começa a ficar zangada com sua intromissão e, claro, com as mulheres de seu passado, servindo como ferramentas propulsivas que alavancam a história sem que seja necessário recorrer a momentos de ação típicos de histórias dessa ordem. Sim, há ação propriamente dita, mas ela é esparsa e econômica, só quando realmente como mecanismo essencial e lógico para os desdobramentos da história central, nunca só porque é isso que se espera de quadrinhos detetivescos.
Se Eva é uma personagem fascinante e a história que a apresenta é instigante, a arte do próprio Lafebre – que começou sua carreira nos quadrinhos apenas como desenhista – é o que faz tudo realmente funcionar. Com traços levemente caricatos, mas extremamente expressivos, o artista constrói seus personagens de tal forma que é impossível imaginá-los de outra maneira, especialmente, claro, Eva, com seus figurinos elegantes, mas nunca pedantes e sua postura de absoluto desdém por qualquer autoridade. É como a personificação da mulher independente, mas sem que Lafebre recorra a estereótipos, algo que ele deixa reservado para as visões da avós e tias de Eva e, também, para seu terapeuta que é quase como a figura padrão de um psiquiatra.
Eu Sou o Seu Silêncio é uma HQ vendida como romance policial e executada como tal, sem que o leitor tenha chance de sair desapontado com o caso investigado, mas o que realmente importa, aquilo que efetivamente encanta do começo ao fim é Eva Rojas e seu jeito de ser, sem que Jordi Lafebre glose suas características menos do que ideais e, principalmente, sem perder de vista os distúrbios mentais que ela enfrenta. Não há nada melhor do que ler uma HQ que apresenta uma nova personagem que já nasce completa e que captura a imaginação do leitor no primeiro quadro. Que venha o próximo volume que, aliás, foi publicado há pouco!
Eu Sou o Seu Silêncio (Je Suis Leur Silence – França/Bélgica, 2023)
Roteiro: Jordi Lafebre
Arte: Jordi Lafebre
Cores (assistentes): Clémence Sapin, Bruno Tatti, Laëtitia Ferouelle, Angelina Rodrigues, Romain Rosiau
Editora original: Dargaud
Data original de publicação: 13 de outubro de 2023
Editora no Brasil: Pipoca e Nanquim
Data de publicação no Brasil: 14 de março de 2025
Tradução: Fernando Paz
Páginas: 116
