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Crítica | Eu Verei (2025)

A conspiração do destino.

por Ismael Vilela
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É fato: a contemporaneidade insiste em romantizar a adversidade ou em destilar a dor em clichês melodramáticos. A estreia de Mercedes Stalenhoef, Eu Verei, emerge, porém, como um objeto de arte contundente, negando-se a adocicar ou mesmo idealizar a experiência de uma catástrofe pessoal, esquivando assim da tendência hollywoodiana idealizadora. O filme se insere na linhagem das narrativas de formação que se alimentam do sofrimento como catalisador de maturidade, mas o faz com um rigor formal e uma honestidade que o distinguem dos filmes comuns do gênero, operando como uma espécie de lente de aumento implacável sobre a interseção entre o desenvolvimento adolescente e o trauma, em que a experiência é o mais duro dos mestres, pois primeiro aplica a prova e só depois ensina a lição.

No cerne desta obra está Lot, interpretada com uma visceralidade assombrosa por Aiko Beemsterboer, cujo desempenho é o eixo emocional do filme. Lot, aos dezessete anos, vivencia o apogeu da vitalidade juvenil, no hobby uma mergulhadora, cuja vida se anunciava pela euforia e por um futuro brilhante. O impacto brutal de um acidente com fogos de artifício no Ano Novo – aqui, um prenúncio estilhaçado de futuro –, porém, a mergulha em uma cegueira inesperada e total. É a partir dessa trama que a excelência da direção de Stalenhoef, em comunhão com o roteiro, que haverá a recusa taxativa em atenuar o dilema doloroso do luto e da adaptação. A negação de Lot, seu grito “Não sou deficiente!” à mãe, a teimosia em rechaçar o centro de reabilitação e o ato simbólico de esconder a bengala branca – vista como a confissão derradeira de sua nova realidade – ressoam com a verdade universal da resistência humana à mudança catastrófica. Beemsterboer, com rara precisão, navega esta montanha-russa, entregando performances que oscilam entre a raiva explosiva e a vulnerabilidade mais crua.

A trama adquire uma riqueza e complexidade singulares ao entrelaçar a perda da visão com as já inerentes e tumultuadas provações do amadurecimento. Eu Verei acaba por sondar, de maneira perspicaz e delicada, como a cegueira se torna um fator que compõe as transformações da adolescência, forçando Lot a negociar noções essenciais de autonomia, intimidade e agência. A cena em que a protagonista deve recorrer a um familiar para verificar sinais de sua menstruação é um exemplo de cinema poderoso, traduzindo a perda da autonomia em um momento de intensa humilhação privada. Da mesma forma, sua promessa, ligeiramente ébria, de superar todos eles diante dos planos acadêmicos dos amigos, revela não apenas a dor da exclusão, mas o desespero de uma adolescente que se vê obrigada a reafirmar-se em um mundo subitamente inacessível.

A introdução de Micha, vivido por Minne Koole, e Ed, com a composição de Edward Stelder, no centro de reabilitação, oferece o alicerce crucial para a evolução de Lot. Longe de qualquer idealização fácil, o centro é retratado como um refúgio de imperfeição humana, onde o trio se apoia, trocando histórias, mas também se entregando a confortos autodestrutivos — álcool e tabaco — para gerir a tensão de sua condição partilhada. A reabilitação, aos olhos de Eu Verei é mais uma construção ético-empática do que um lugar para marginalizados. Esta abordagem destituída de óculos cor-de-rosa da deficiência é um dos maiores méritos da direção de Stalenhoef, que descarta os óculos cor-de-rosa e oferece uma bela abordagem cinematográfica da multifacetada experiência da cegueira sem se esquivar de suas arestas mais irregulares.

Logo, entende-se que Eu Verei é uma experiência imersiva e de execução magistral. Tecnicamente, a cinematografia de Mark van Aller é um triunfo estético, mantendo-se fiel à experiência subjetiva de Lot. A câmera, frequentemente focada no rosto de Beemsterboer, resiste a mostrar os demais personagens em sua totalidade, reduzindo-os a fragmentos de rostos ou vozes orbitando a protagonista. Este uso engenhoso de enquadramento apertado e a câmera comunicam de maneira brilhante como o mundo de Lot se contraiu para o alcance imediato do seu corpo: um toque, uma superfície, o som do roçar da bengala no chão. Os planos em PoV, obscurecidos por borrões e manchas escuras, colocam o público na pele da personagem de forma respeitosa, mas chocante. Esta paleta visual de tons frios, que espelha o retraimento emocional de Lot, contrasta de forma espetacular com as sequências de sonho, onde a visão é restaurada em uma explosão de cores e clareza.

Em suma, a obra dirigida por Mercedes Stalenhoef é um drama de amadurecimento corajoso e profundamente ressonante. Embora o filme pudesse ter se beneficiado de momentos em que a emoção fosse melhor trabalhada, em pausas de maior introspecção que permitissem ao espectador e à personagem um respiro mais amplo, a intensidade das performances, o rigor técnico, e a inclusão honesta das arestas irregulares da cegueira, em vez de um retrato idealizado, fazem de Eu Verei uma obra muito boa, essencial e profundamente humana. É um filme que, ao explorar a perda da visão, nos ensina a olhar a vida sob uma perspectiva inteiramente nova, aquela que se forja na aceitação do que é inevitável. Claro que todo esse argumento viria de uma argumentação ética muito mais que razoável.

Eu Verei (Ik Zal Zien) – Países Baixos, 2025
Direção: Mercedes Stalenhoef
}Roteiro: Britt Snel, Mercedes Stalenhoef
Elenco: Aiko Mila Beemsterboer, Minne Koole, Roman Derwig, Hannah Van Lunteren
Duração: 95 min

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