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Crítica | Eu Vos Saúdo, Maria

Godard, infame.

por Fernando JG
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Esse polêmico filme do cineasta francês Jean-Luc Godard faz parte de uma fase madura do autor.  Após se aventurar numa primeira fase despojadamente pop e posteriormente mergulhar num cinema político emblemático, o diretor dá as caras, recuperando elementos da Nouvelle Vague e da vanguarda dos anos 70 para fazer uma arte comercial. Logo ao finalizar o imperfeito Carmen (1983), se iniciam os trabalhos nesse que seria uma leitura moderna de um famoso mito bíblico: o de Maria e José. Como já era esperado, e como havia acontecido anteriormente, o longa-metragem é censurado e negativamente criticado pela abordagem de seu conteúdo. Longe de ser um casto, aqui, Godard é infame. 

Esse retorno à Terra que faz o cineasta nessa década de oitenta é caracterizado por fazer releituras num estilo livre, mas seguramente maduro. Se nota, assim como em Détective e Carmen, que Eu Vos Saúdo, Maria se vale com firmeza dos métodos godardianos de rupturas com a linearidade narrativa, mas aqui há algo de especial. O estranhamento provocado pela decupagem de um roteiro abstrato converge com a estilística solta da montagem, que constrói um punhado de fragmentos que contam uma história pelo avesso da moral. Todas as ideias da tradição são colocadas de cabeça para baixo. Ideias fora do lugar. Dito isso, vamos a ela.

Marie (Myriem Roussel) é uma jovem estudante do colegial, cujo hobby é praticar basquete no time da escola. No tempo livre, ela trabalha com seu pai num posto de gasolina. Seu namorado, Joseph (Thierry Rode), um taxista grosseiro, vive desconfiado de Marie. Com inúmeros sintomas de mal-estar, Marie consulta-se num médico e constata a fatídica gravidez. E a cereja do bolo: a heroína está grávida ainda virgem  Um rapaz, Gabriel (Philippe Lacoste), tenta a todo o custo convencer Joseph da condição de pureza de Marie, mas ele demora a acreditar nessa fábula, até que aceita o fardo, declara-se a ela e nasce o primogênito. 

Se deixarmos de lado todo o burburinho em torno do motivo “Maria e José”, fato este que confere ao filme um caráter inevitavelmente blasfemo, encontramos um enredo que prega, de maneira alegórica, uma discussão a respeito do nascimento e da geração de algo ou de uma vida: lembre-se das cenas do terceiro ato em que o longa-metragem se concentra em evidenciar, por meio de imagens avulsas, retratos do nascer do Sol, do crescer das flores, da estação primaveril, entre outros aspectos imagéticos que demonstram na retórica fílmica a sua intenção. 

Provocações. Esse é um filme de provocações, da forma ao tema. É abertamente polêmico porque Godard, agora que retorna para o circuito comercial, faz vender a sua arte através de um suscitar de curiosidades alheias. Quando censurado pelo papado em nome da fé, o filme ganha um destaque imediato e com isso bate recorde de bilheterias. De modo orgânico, não há nada que faça desse filme uma espécie de obra-prima para ganhar tantas atenções, mas ele investe na subversão como artifício retórico. 

A narrativa não oferece grandes problemas, afinal, está tudo dado pelo próprio mito. Sabemos qual o desfecho e ele não surpreende. O que dá a ver o seu caráter revolucionário é a sua montagem. Sabe-se que o segredo do cinema godardiano encontra-se na disposição imagética e na produção de um terceiro significado a partir da conexão de dois itens: como quando Maria está prestes a ter o filho, presente divino, e então desemboca a fazer uma reflexão absolutamente imoral e suja a respeito do corpo enquanto carne, em contraposição ao espírito, resultando na ideia do descompasso entre alma e corpo; contrapondo à ideia da pureza de uma Maria que fora escolhida para ser a mãe de Deus. Aliás, esse é outro ponto: contrapõe-se, todo o tempo, as relações conflituosas entre carne e espírito. Se há, portanto, um conflito de origem carnal que vai de encontro com a ideia de espírito, estaria Godard fazendo uma alusão a algum adultério que, não sendo de Maria bíblica, é de sua personagem? 

Talvez a discussão espiritual (carne x alma) seja o que mais se sobressaia de positivo, inclusive, feita através de um modelo teatral próximo a Brecht. Porém, o pedantismo de um Godard ultraintelectualizado leva a película à beira da abstração, se distanciando ao máximo do público, restringindo-se àqueles que, verdadeiramente, sabem ler a linguagem cinematográfica e estão dispostos a desvendar um filme que não entrega, ao fim, nada senão uma farsa de um problema filosófico (origem da vida) mascarado sob a alegoria do mito da virgindade de Maria, que concebe algo inexplicável e que é muito maior do que nós, isto é, Cristo. 

Quanto a nós, concebemos, sim, mas concebemos um profundo efeito de tédio. Fazemos um esforço incessante de montar cada peça como se estivéssemos montando um quebra-cabeças para, no fim, não chegar a lugar algum, tampouco nalguma relevância. Se a intenção era provocar e fazer reconhecer o brilhantismo do trabalho técnico-narrativo, voilà! Não há dúvidas disso. Abjeta, destrutiva e fragmentária, a técnica godardiana produz um profano longa-metragem que, testando os limites da narrativa bíblica, entrega uma peça fosca na imagem e sobretudo cáustica no discurso, gerando um inevitável estranhamento e mal-estar como efeitos de filme. 

Eu Vos Saúdo, Maria (Je Vous Salue, Marie) — França, Reino Unido, Suíça, 1985
Diretor: Jean-Luc Godard
Roteiro: Jean-Luc Godard
Elenco: Myriem Roussel, Thierry  Rode Joseph, Mary Poitou, Philippe Lacoste, Manon Andersen, Malachi Jara Kohan, Juliette Binoche, Anne  Gautier, Johan, Georges Staquet
Duração: 107 min.

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