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Crítica | ExistenZ

por Leonardo Campos
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Peculiar. Este é um dos termos que melhor define a cinematografia do canadense David Cronenberg. 1999: um ano peculiar, permeado pelas incertezas da humanidade diante do que aconteceria com a humanidade na virada do milênio. Eis o terreno contextual de ExistenZ. A especificidade do cineasta com um ano bastante profícuo nas discussões das incertezas e receios diante da tecnologia permitiu que diversas produções delineassem um panorama de previsões e reflexões sobre a simbiose entre homem e máquina, já presente na vida cotidiana antes deste período, mas fervilhante em 1999. Numa retomada mais radical ao universo de Videodrome – A Síndrome do Vídeo, de 1983, o realizador resgata o seu entendimento sobre “a tecnologia como uma extensão do corpo humano”, na entrega de uma narrativa de 97 minutos que problematiza a presença dos seres humanos diante do estabelecimento de novas realidades e passagens virtuais, embaralhadoras do que se discutia sobre o “real” e o “virtual”, debate basilar na chamada era eletrônica, conhecida por sua profusão de realidades dentro de outras realidades, numa dramatização frenética sobre o que éramos e o que estávamos nos tornando. Além de assumir a direção, David Cronenberg rege o seu próprio roteiro, texto que nos situa diante de uma história sobre a coexistência entre humanos e tecnologia dominante.

Em ExistenZ, Allegra (Jennifer Jason Leigh) é uma celebridade no mundo dos videogames. Certo dia, juntamente com a sua equipe, ela vai ministrar uma conferência que tem como atrativo, a demonstração de seu mais novo jogo com realidade virtual. Na ocasião, é baleada por uma das pessoas do público, alguém que saberemos adiante, faz parte de um segmento interno da própria empresa, focado em sua eliminação. Quem a ajuda é Ted Pikul (Jude Law), jovem que ela acreditava ser o seu segurança, mas na verdade é o seu estagiário de marketing. Agora, na jornada em busca da sobrevivência e compreensão dos mistérios que envolveram não apenas o ataque, mas o destino dos envolvidos naquela situação, Allegra precisa instalar o bioport no corpo de Ted, para que juntos, eles adentrem no universo de eXistenZ e solucionem os conflitos necessários para a continuidade de suas respectivas jornadas. Aqui, o cineasta aproveita a ocasião para inserir as suas alegorias sexuais. A porta de entrada do cordão que conecta os personagens entre o real e o virtual se assemelha a um ânus, haja vista a sua localização, nas costas, especificamente numa região logo acima das nádegas, ponto de conexão importante para envio dos transmissores para a coluna e manter o humano na realidade virtual. Ao inserir ou solicitar ajuda de alguém para a execução da atividade, o cordão pede lubrificação, manipulação com os dedos na área, etc. Mais alegoricamente sexual que isso, creio ser impossível.

E sendo Cronenberg, estas situações já são esperadas. Neste mundo erguido pelos efeitos visuais supervisionados por James Isaac e maquiagem de Stephan Dupuis, os personagens lidam constantemente com seres híbridos, alegoria para a simbiose homem-máquina, uma relação tratada com exuberância por Matrix, da mesma época, produção que caminhou numa perspectiva filosófica tangencial aos temas de ExistenZ, sendo a trama do canadense mais pessimista que o clássico moderno das irmãs Wachowski. Dentre os personagens com algum destaque no desdobramento da ação, temos Gas (Willem Dafoe) e Kiri Vinokur (Ian Holm), figuras preponderantes diante de alguns acontecimentos que impulsionam a narrativa para seu final tomado por reviravoltas. Ao passo que avançam em suas trajetórias, Allegra e Ted precisam compreender o que é real ou imaginário, quem se porta como inimigo e quais são os seus possíveis aliados, num ambiente que muda constantemente, sem aviso prévio. É uma travessia que também pede aos personagens a entrada e a saída vertiginosa do jogo, numa metáfora bem conduzida sobre as drogas e seus efeitos alucinógenos no corpo humano. E mais: parece que na dinâmica interna da narrativa, tanto a dupla quanto os demais humanos que passam pela história, buscam a imortalidade, um prolongamento da vida terrena, algo permitido apenas no interior do game, recurso alienador para aqueles que aparentemente não suportam a “dor da existência”.

Tomado pela ansiedade oriunda de um olhar que prevê o apagamento do sujeito e a criação de uma nova individualidade, arquitetada para circundar os espaços das telas de computadores, celulares, videogames, dentre outros suportes tecnológicos, o universo da ExistenZ, tanto o “real” quanto o “virtual”, foram erguidos pela equipe sempre competente do cineasta, formada pela direção de fotografia assinada por Peter Suschitzky, responsável por entregar os melhores ângulos na captação das imagens desta narrativa agitada, de paletas distintas durante a entrada e saída dos universos propostos pela trama, acompanhados pelo trabalho costumeiro de Howard Shore na composição de uma textura percussiva eficiente e conectada aos temas da produção. Imersiva, ela permite que o potencial dramático do design de produção de Carol Spier seja mais pomposo, setor que investe num “real” bem anacrônico, sem a esperada abordagem da ficção científica. É uma ambientação com chalés, bastante vegetação, distanciamento dos grandes redutos urbanos, etc. No geral, mundo sem joias, relógios e roupas geralmente lisas, figurinos assinados por Denise Cronenberg, trajes sem estampas, a coadunar com os aspectos psicológicos que definem as necessidades dramáticas dos personagens.

Ao adentrar no universo de ExistenZ duas décadas depois de seu lançamento, podemos perceber que as suas discussões dialogam com a atualidade de maneira bastante pertinente. Visto como radical por alguns críticos e espectadores em 1999, a narrativa de fato é crua no que concerne ao posicionamento do cineasta em relação ao processo de simbiose entre homem e máquina, ao avanço da alienação entre a humanidade e as mídias. É uma ambientação ficcional, obviamente, voltado ao entretenimento, com seus revólveres onde a munição é preenchida com dentes humanos, terreno que nos expõe a representação diante da representação, num jogo de espelhos entre o que se define de maneira não unânime entre realidade e a virtualidade, conceitos debatidos constantemente na seara acadêmica, na mídia e até mesmo no senso comum, dualidade que ainda possui energia suficiente para problematizações, reiterações, reconsiderações e novas conceituações. Em sua ousada jornada que demonstra ao espectador uma possibilidade de interação diferenciada do costumeiro no cinema da época, David Cronenberg nos coloca no posto de espectadores mais ativos, numa dinâmica metalinguística tão competente que ultrapassa os limiares ficcionais e parece colocar os conflitos cinematográficos para gravitarem diante de nossa existência.

Ademais, seria a vida tão insuportável que a humanidade precisa recriá-la virtualmente para conseguir atravessa-la? Podemos considerar ExistenZ uma narrativa sobre a busca dos seres humanos por ajustar na virtualidade os desacertos da realidade? São questionamentos provocativos, oriundos de um filme que tem um desfecho brusco, sem muitos pormenores e explicações cabais diante das ações dos personagens. É uma obra que considero aberta, dilatada para um amplo feixe de discussões, sem o costumeiro final organizado e amarrado da maioria das narrativas do circuito comercial mais massivo, presas aos manuais de dramaturgia hollywoodianos, dando ao público um painel de perguntas que não vem acompanhadas de respostas prontas. Tal como as demais obras de David Cronenberg, ExistenZ é relativamente hermética nas discussões propostas, compreendida por quem de fato filosofa sobre a sua própria relação com a virtualidade, nós, atuais “leitores, espectadores, internautas”. E, numa ampliação da referência ao renomado livro de Canclini, “seguidores/influenciadores digitais”, algo que seria interessante de ver numa possível atualização do filme, na atual era das redes sociais e seu enraizamento ainda mais devastador e rizomático na vida dos seres humanos, tão dependentes quanto o personagem de Jude Law aqui, inicialmente alheio, posteriormente dependente da tecnologia para preencher a sua existência de alguma significação.

ExistenZ — Canadá, 1999
Direção: David Cronenberg
Roteiro: David Cronenberg
Elenco: Christopher Eccleston, Don McKellar, Ian Holm, Jennifer Jason Leigh, Jude Law, Sarah Polley, Willem Dafoe
Duração: 97 min.

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