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Crítica | Expresso do Amanhã – 3X04: Bound by One Track

Melanie está de volta! Ou quase...

por Ritter Fan
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Bound by One Track poderia ser apenas mais um episódio de Expresso do Amanhã, mas fico feliz em constatar que não é, que Graeme Manson, no comando geral, e Renée St. Cyr, no cuidadoso e complicado roteiro, fizeram esforço para criar um momento convergente que lida sobre os traumas do passado e como eles dão forma ao presente e futuro. Há tanta coisa para falar sobre ele que tenho certeza que esquecerei de muita coisa, mas o fato de tudo ter sido abordado com vagar, dando espaço a cada um dos personagens focais, já é um mérito impressionante da roteirista em conjunto com o trabalho da diretora Leslie Hope.

Há dois trunfos no episódio. O primeiro deles é como tantos personagens tão diferentes ganham narrativas paralelas tematicamente semelhantes e com uma bela – ainda que não completa – convergência ao final. O segundo é a presença de Melanie – ou da lembrança de Melanie manifestada conforme as memórias de Alex e de Wilford – que não só funciona tremendamente bem como cola narrativa, mas também como a interação dela especialmente com Alex foi bem fotografada e dirigida, criando momentos de lirismo em meio aos traumas.

Em uma série menos ambiciosa, talvez o incidente que força o Perfuraneve a parar para que Alex e Ben retirem alguns vagões deixados ali por Wilford e que bloqueiam os trilhos resultasse em um episódio que ficasse permanentemente focado em dois núcleos, o de Alex na linha de frente e o de Wilford, solitário, em sua prisão, com Melanie servindo de ponte entre eles. Mas, no lugar de se contentar com isso, o roteiro usa o vagão como um instrumento que nos lembra – e faz Alex relembrar – dos terríveis atos cometidos por Wilford para que, em sua cabeça, a sobrevivência de Big Alice fosse possível. A vontade de Alex de enfrentar esses fantasmas e, no processo, compreender os sentimentos opostos e contraditórios que sente por Wilford e, também, emancipar-se dele, com Melanie servindo de guia espiritual.

Vejo esse momento como o ponto de virada para a personagem, pois é aqui que o bastão parece ser mesmo passado para ela. Wilford, em sua genialidade maquiavélica, estava pronto para negociar sua saída do cativeiro em troca de informação de permitisse o destravamento dos vagões, somente para ter seus planos interrompidos por Roche (já chego nele), forçando Alex a incorporar de vez a mãe e “sentir” o trem, mesmo considerando todos os fantasmas terríveis que ela, com muita maturidade, elegeu ver para acalmar sua mente atormentada por um passado assustador. Não sei se um dia Melanie voltará para a série, mas, independentemente disso, considerando que a liderança de Layton é algo que ainda não conseguiu funcionar para mim (e, creio, para ninguém do trem, além de seu grupinho especial), é importante que Alex ganhe esse tipo de destaque.

Essa linha narrativa principal é, portanto, inteligentemente ecoada, de maneiras bem diferentes, em Asha, Javi e Roche, milagrosamente sobrando tempo para que as duplas Layton e Zarah e Ruth e Pike também ganhem desenvolvimento, ainda que fora do grande eixo temático sobre memórias, passado e culpa. Sabe quando em determinada altura de uma série o roteirista tenta abraçar tudo ao mesmo tempo e acaba criando uma confusão infernal, com a direção, consequentemente, metendo os pés pelas mãos na distribuição temporal de cada núcleo? Pois bem. Isso simplesmente não acontece aqui, com a roteirista criando um texto tão enxuto e cirúrgico que nada parece fora do lugar e a diretora, por sua vez, fazendo todas as sequências terem exatamente o tempo que precisam ter para que elas funcionem em plena harmonia.

O segredo disso é foco. Alex e Wilford permanecem como os alvos dos holofotes da história sendo contada. Os demais ganham o tempo que precisam apenas, sem que sua permanência em tela vá além do estritamente necessário para que a temática que une todos os núcleos seja devidamente aborda. Vejam Javi, por exemplo. Ele retorna para o comando do trem já que Alex e Ben precisam sair e ele fica literalmente sozinho na locomotiva, o que é um sinal de confiança por um lado e uma temeridade de outro e o trauma dele se manifesta na forma do fantasma do rotweiller de Wilford em sequências muito breves, do tipo piscou perdeu, mas que dão o exato tom do trauma que ele viveu e cujos reflexo permanecem. Asha, por seu turno, vive um duplo trauma, já que não só ela precisa manter uma mentira gigantesca constantemente, mentira essa que eu simplesmente não consigo entender como fica de pé, como ela também sofre com a chamada Culpa do Sobrevivente, em que a pessoa literalmente não aceita estar viva quando todos os demais ao seu redor morreram. Da mesma forma que com Javi, só que naturalmente com mais extravagância, já que ela explora, deslumbrada, o trem, seu tempo de tela é minucioso, nem um minuto a mais, nem a menos do que o essencial.

A forma como o roteiro lida com o recém-descongelado Roche é que leva à convergência parcial que mencionei no começo. Destroçado pela perda da esposa para as malditas gavetas de hibernação, vemos o personagem querendo chegar a um ponto de equilíbrio, com o texto dando a entender que ele talvez queira se suicidar, somente para revelar que, na verdade, o que ele quer é matar Wilford. E não temos como culpá-lo pelo que ele faz e, se esquecermos nossa humanidade lado por um momento, até torcemos para que ele consiga. E ele chega bem próximo, com Layton precisando chamar socorro e dizer que a informação que eles precisam não sairá da boca do “poderoso chefão”, levando, então, à já discutida emancipação de Alex que, no final, é vista na cabeceira da cama de Wilford certamente na fronteira entre o amor e o ódio. Em outras palavras, outro grande acerto do texto de Renée St. Cyr.

Os outros dois núcleos, ou melhor, os dois casais que ganham desenvolvimento, são acertos menores do roteiro. O tempo dedicado a eles não atrapalha o episódio, mas também não o beneficia. É mais uma necessidade macro do que algo que deveria, narrativamente, estar em Bound by One Track. Ruth e Pike juntos é uma consequência boa do tempo em que eles atuaram juntos em Big Alice, mas o que realmente fica dessa relação é a vontade de Pike que Ruth tome o lugar de Layton. Essa semente pode germinar em uma linha narrativa interessantíssima se o desenvolvimento da série souber oferecer os nutrientes necessários para ela desabrochar. No caso de Layton e Zarah, o conceito de que o filho deles é “também” filho de Wilford é terrível e ao mesmo tempo fascinante. Em outras palavras, são duas ótimas ideias da temporada que apenas me pareceram inseridas aqui por uma necessidade externa à temática do episódio, de certa maneira detraindo do todo, mas não de maneira radical.

Eu falei que tinha muito o que discutir, não é mesmo? É raro um roteiro saber lidar com praticamente todos os assuntos principais de uma série já em sua terceira temporada sem parecer uma corrida de 100 metros rasos, com poucos segundos dedicados a cada núcleo. Aqui, muito pelo contrário, há um equilíbrio quase perfeito que a direção de Hope sabe transpor com toda a técnica para a telinha. Resta agora saber como todos esses traumas definirão o futuro da humanidade perpetuamente em espaço confinado.

Expresso do Amanhã – 3X04: Ligados por um Trilho (Snowpiercer – 3X04: Bound by One Track – EUA, 14 de fevereiro de 2022)
Showrunner: Graeme Manson (baseado no filme homônimo de Bong Joon-Ho e na graphic novel O Perfuraneve de  Jacques Lob, Benjamin Legrand e Jean-Marc Rochette)
Direção: Leslie Hope
Roteiro: Renée St. Cyr
Elenco: Daveed Diggs, Mickey Sumner, Alison Wright, Lena Hall, Iddo Goldberg, Sean Bean, Katie McGuinness, Sam Otto, Sheila Vand, Roberto Urbina, Annalise Basso, Steven Ogg, Rowan Blanchard, Tom Lipinski, Archie Panjabi, Mike O’Malley, Jennifer Connelly
Duração: 46 min.

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