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Crítica | Fake, de Felipe Barenco

por Cida Azevedo
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No ano passado (2016), as escolas municipais de São Paulo receberam uma portaria que versava sobre o trabalho desenvolvido nas chamadas salas de leitura. Segundo as novas diretrizes, deveriam ser abordadas obras de autores e temáticas tais como mulheres, negros, periféricos… e público LGBT. Só nesse momento — cegos pelos privilégios, como somos às vezes — percebi que praticamente não conhecia literatura que tratasse da homossexualidade e/ou transexualidade de maneira central e natural. Havia visto uma ou outra coisa no cinema (como o belíssimo Hoje eu Quero Voltar Sozinho), mas em matéria de leituras… Nada. Felizmente, pouco depois chegou às minhas mãos o romance Fake, do estreante Felipe Barenco. O livro veio até mim pela recomendação de um amigo que achava importante justamente a representatividade do romance, especialmente se tratando de literatura juvenil.

Fake é narrado em primeira pessoa por Téo, um jovem carioca que acaba de ingressar numa prestigiada faculdade de direito. Téo mora com os pais, o irmão Lucas e a avó, numa perfeita família tradicional brasileira… exceto o fato de que ele é gay, embora os pais ainda não saibam no início da trama. A verdade virá à tona, no entanto, pois Téo se apaixona por Davi, um jovem paulista com o sonho de ser ator. E desse relacionamento conturbado e cheio de reviravoltas vai se tecendo um romance moderno e personagens muito reais, que enfrentam desde problemas familiares, primeiro emprego, dor de cotovelo, até… o vírus HIV.

O livro de Felipe Barenco trata, antes de tudo, da entrada na vida adulta. O ingresso na universidade, a independência — desejada ou forçada pelas circunstâncias –, a dificuldade em se tomar decisões e em pagar as contas são questões que permeiam o enredo. É interessante como é fácil para um leitor jovem adulto se identificar com grande parte dos problemas de Téo. Fake é sobre a vida comum, o cotidiano. Mas isso não o torna menos atraente, pelo contrário: como numa novela, somos impelidos a descobrir como o jovem protagonista vai resolver a vida e se livrar das enrascadas tão reconhecíveis por tanta gente. Quem sabe a resolução da trama não dá até umas dicas, por que não?

Outro ponto legal do romance de Barenco é o tratamento dado ao HIV. O vírus que foi o pavor de gerações e repetidamente tratado na mídia de maneiras bem questionáveis aqui adquire contornos mais realistas. Não há descrições terríveis sobre pessoas à beira da morte, nem idealização do mártir que sofre com a doença cruel e incurável. Só pessoas comuns, com seus defeitos inerentes, lidando da maneira possível com o choque, o medo, a doença. As dificuldades enfrentadas por um casal em que há apenas um soropositivo. E, o mais importante: como a presença da doença não anula todos os conflitos existentes antes, durante ou depois da descoberta, nem transforma ninguém em santo ou capeta. Parece básico, mas infelizmente nada disso é óbvio.

A narração do romance também é bacana. O livro é escrito em capítulos curtos, cheios de referências à poesia e à cultura pop. Autodefinido como YA, apresenta a linguagem simples, jovem e tranquila comum ao gênero, acrescida de certo lirismo bonitinho e autoral. De maneira simples, sem muita firula, conquista pela proximidade com o que é real, com o que é nosso, por assim dizer, pelo menos no que diz respeito a um brasileiro urbano jovem de classe média. Não é melhor também por isso: às vezes, falta um pouco de emoção, uma sacudida (assim como na nossa vida real também, né não?), uma reviravolta que esquente as coisas. Às vezes é muito morno. Porém, o crescimento do jovem Téo — a história se passa mais ou menos no intervalo de um ano, mas muuuuita coisa acontece com ele nesse período — é trabalhado de maneira delicada, cumprindo aquilo a que o romance se propõe.

Cabe dizer que o desfecho é inusitado — um tanto engraçado e surpreendente, pode-se dizer, especialmente depois da já citada carência de emoção. Uma mancada grande da edição que vale mencionar é a presença de um baita spoiler no marcador de página que acompanha o livro: imperdoável. De resto, a gente perdoa os pequenos deslizes de Barenco porque a proposta é bacana demais. Estamos falando de um protagonista gay não estereotipado e com o qual é fácil se identificar. O tipo de livro que é necessário e muito bacana, mas que infelizmente ainda é pouco acessível. Segundo o site do autor, Barenco “escreveu o livro que sempre quis ter lido quando era novo, mas que ninguém escreveu”. Só podemos esperar que os jovens Felipes de hoje possam ter cada vez mais livros e personagens que os representem.

Fake – Brasil, 2014
Autor: Felipe Barenco
Publicação: Umô – Usina de Criação
263 Páginas

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