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Crítica | Fantasia (1940)

por Gabriel Carvalho
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Contém magia.

Após lançarem Branca de Neve e os Sete Anões, os estúdios de Walt Disney seguiram – e seguem – a lógica deste grande sucesso, apresentando a magia em seu estado mais imagético, atravessando contos tão antigos quanto o tempo, mas também encontrando espaço em histórias mais modernas, moldando, então, muitas mensagens universais e atemporais sobre valores como esperança, como é o caso de Pinóquio. Porém, lançado não muito tempo depois da história do boneco que queria virar gente, Fantasia é a magia em seu estado mais puro, sem intuito maior que isso. Nenhum outro filme da empresa atinge a inocência e ambição deste longa-metragem – uma nova forma de entretenimento, como anunciaria o mestre de cerimônias Deems Taylor, logo no começo dessa gigantesca obra. A estética cinematográfica em seu âmbito mais magnífico, impulsionado pela própria natureza dos trabalhos excepcionais de animação da empresa, a qual trouxe para o mundo muito do que hoje se entende por magia. Às vésperas da Segunda Guerra Mundial, Walt Disney e companhia decidiram confeccionar um extraordinário trabalho audiovisual, de plenitude incomparável, incorporando música clássica de compositores inesquecíveis dentro de segmentos animados grandiosamente por artistas de competência singular. Sem mais delongas, Fantasia é uma obra-prima desde o seu nascimento. Preparados para o espetáculo?

A ousadia é imensa. Afinal, como apresentar música erudita para um público comum? A começar, os realizadores do longa-metragem ainda inauguram seu produto artístico com a abstração, pavimentada pela antecipação de Taylor. A ideia nasce da primeira sequência da obra, Tocata e Fuga em Ré Menor, uma peça de Johann Sebastian Bach conduzida neste espetáculo, assim como as demais, por Leopold Stokowski e a Orquestra de Filadélfia – todos os músicos situados em frente a um belíssimo fundo azul. Possuindo um ar brevemente lisérgico, a orquestra torna-se a própria beleza dos primeiros minutos da obra, já fazendo-nos identificar a maneira exímia como som e imagem serão amarrados cirurgicamente. As diferentes tonalidades de cores invadem nosso campo visual, dando ênfase clara às vermelhas e azuis. Se não bastasse tanta formosura inicial, a graciosidade ressurge com o ballet mais conhecido do russo Tchaikovsky, Suíte Quebra-Nozes. As imagens agora tomam moldes mais concretos, apresentando coreografias irretocáveis no meio de uma fauna e flora invejável. Um deleite assistir a dança das flores ou a performance ritmada dos peixes e das fadas. Notem como a nudez, não abordada apenas neste segmento, é tratada no filme: um “nu” – estamos falando de personagens animados – artístico, que mostra uma maturidade do estúdio em abordar a temática.

O espectador, mergulhado no mais difícil de absorver, então depara-se com um velho conhecido, criando-se coesão rítmica para não abafar o potencial da obra. No terceiro segmento de Fantasia, em uma sequência conduzida pelo poema sinfônico O Aprendiz de Feiticeiro, de Paul Dukas, o jovem pupilo do poderoso Yen Sid é vivido pelo famoso Mickey Mouse, com a voz sendo feita por Walt Disney, igualmente imortal. O público depara-se com uma narrativa “tradicional”, na qual o aprendiz, em decorrência de uma tarefa extremamente cansativa, pega emprestado o chapéu do feiticeiro e dá vida a uma vassoura, criando margem para o surgimento de diversas problemáticas que fogem de seu alcance. Dentre as extensas habilidades imaginativas e de domínio da técnica cinematográfica apresentadas neste filme, reparem no uso assombroso das sombras, em especial, no momento no qual o aprendiz destrói a vassoura. O medo assola um Mickey aterrorizado. Mas a música, como personagem central, é a verdadeira culpada por esse terror. A inundação é feroz, com o alinhamento musical traduzindo o forte senso provido por aquela grandiosidade desesperadora. A água, aliás, é extremamente bem animada pelos realizadores do filme, além de que o visual aqui apresentado do personagem é um acerto atemporal. O chapéu do feiticeiro é um dos itens mais icônicos da história das animações.

Já o propósito de Igor Stravinski ao criar a maravilhosa A Sagração da Primavera, de acordo com as suas próprias palavras, expressar vida primitiva, é belamente alcançado pela animação de 1940. Antes de tudo, a jornada de evolução da vida tem como pano de fundo um musical belíssimo. Porém, tão extraordinária quanto a condução da orquestra, a qualidade da animação não poderia ser mais indubitável. Os vulcões brilham no mesmo passo que a música se exalta, em uma sincronia invejável. Além disso, se a água de antes era motivo de aplausos, a lava deste segmento consegue ser ainda mais encantadora – um paradoxo interessante. Da poeira cósmica à extinção dos dinossauros, essa é uma trajetória que ressignifica a existência do ser humano. Em comparação a essa gama de imagens tão grandiloquentes, não poderíamos ter sido menor diminuídos a meras formigas. Fantasia nos deixa menores, mas isso não é problema algum, apenas fortalecendo o poder da obra sobre o ser humano, em uma viagem encantadora para um mundo que, por bem ou por mal, não sairá da cabeça dele. Por isso, em seguida, temos a apresentação “personificada” da trilha sonora, apresentada como a chave do sucesso para as animações da Disney. Uma ideia criativa e acertada, rendendo uma psicodelia apuradíssima. A música, assim como Fantasia, tem o poder de nos fazer, meros mortais, transcender.

Depois desse momento deslumbrante, mesmo mantendo a consequência de segmentos de qualidade inabalável, a Sinfonia Pastoral, de Beethoven, surge como o mais polêmico dentre todos os apresentados na ópera. Nessa reimaginação do Monte Olimpo, criaturas mitológicos – como centauros, cupidos e faunos – atendem a um festival para honrar Dionísio, deus do vinho. Mantendo-se mais contido por boa parte da sua duração, em comparação com os demais curtas, apenas a intromissão de Zeus na brincadeira toda, um pouco mais para frente, é capaz de dar início ao espetáculo visual que tanto esperávamos. De antemão, antes de partirmos para o alvoroço criado sobre esse segmento, nota-se que o que os animadores fazem com o reflexo da água, nesta parte do longa, é inacreditável. Já a polêmica propriamente dita, ponto de extrema relevância social, encontra-se na versão original do filme, a qual apresenta uma centauro criança, racialmente estereotipada, fazendo serviços ao agrado de uma centauro branca. Ao ter noção da atitude racista tomada, a Disney acabou retirando esta pequena cena, uma decisão perfeitamente cabível que permitiu a obra Fantasia não ser manchada como outras foram – algo que prova, acima de tudo, que a Disney nada tinha de equivocada, mas de racista. Pois bem, em suma, Sinfonia Pastoral garante uma bela visita ao universo greco-romano.

No mesmo passo de seu predecessor, Dança das Horas, de Amilcare Ponchielli, também apresenta tonalidades mais vivas de cores, assumindo, todavia, uma postura completamente burlesca, sendo a parte mais divertida do filme: um conjunto dançante que não permite-se ser apagado da memória. Por fim, a conclusão épica de Fantasia reproduz a série de composições de Mussorgsky, Uma Noite no Monte Calvo. Por muitos motivos, este projeto artístico da Disney não é considerado um filme destinado a crianças, ao menos no senso comum da expressão, com muito disso se devendo ao assombroso demônio Chernabog, visualmente amedrontador. A dança de espíritos é sombria, mostrando que os animadores trouxeram um contraste imenso entre esse e os dois últimos segmentos que o antecederam, muito mais leves. Fantasia não é uma obra de uma nota só, mesmo expandindo o seu formato peculiar por mais de duas horas, diferenciando-se, apenas pela extensão, de todos os outros longas da empresa. O ritmo e o tom são equilibrados para a viagem do espectador não tornar-se monótona, mas surpreendente. A escuridão então toma conta do espetáculo, apenas para ser encerrada com uma linda execução em coro de Ave Maria, de Franz Schubert. O alvorecer faz o mal desaparecer, situando o espectador dentro de uma conclusão poética, que encerra com chave de ouro esta obra de animação sem precedentes.

No mais, as introduções de Deems Taylor, antes de cada segmento, podem ser vistas como um ponto fora desta curva de magnitude insuperável. É ambíguo que, embora adicionem camadas de informação importantíssimas para um maior apreço do público, tais monólogos quebram levemente o ritmo da obra. Fantasia talvez não precisasse dessa verbalização toda, podendo falar por si só, sem adereços. Isso, no entanto, é algo que não pode se inferir de forma concreta, mas vale, de qualquer forma,  o pensamento dúbio. A realidade é que, em uma tentativa – falha – de se resumir essa ópera, Fantasia é uma brincadeira com as capacidades sensoriais do público nunca antes feita, definitivamente tratando-se, portanto, do filme mais corajoso, original e “artístico” dos Walt Disney Studios. Mas, como dito anteriormente, todo esse texto trata-se de uma tentativa falha de justificar ou entender a existência de uma produção de características ímpares. O entendimento virá, verdadeiramente, apenas pela vivência, pois Fantasia é um brilhante exercício da Disney, cedendo a nós um espetáculo audiovisual de primeira classe. É o cinema em seu formato mais fantástico. É a magia Disney composta de fantasia e encantamento, características as quais ainda perduram nas animações do estúdio, mesmo depois de décadas e décadas do topo de maravilhamento ter sido alcançado tão sensacionalmente.

Fantasia — EUA, 1940
Direção: Norman Ferguson, James Algar, Samuel Armstrong, Ford Beebe Jr., Jim Handley, T. Hee, Wilfred Jackson, Bill Roberts, Paul Satterfield, Ben Sharpsteen
Roteiro: Joe Grant, Dick Huemer
Elenco: Leopold Stokowski, Deems Taylor, Corey Burton, Walt Disney, James MacDonald, Julietta Novis, Paul J. Smith
Duração: 125 min.

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