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Crítica | Fantasma Neon

Ifood também dança.

por Michel Gutwilen
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O curta-metragem Fantasma Neon pode dialogar com outro filme brasileiro deste ano, também exibido no Festival do Rio, que é o longa Paloma, de Marcelo Gomes. Para ambos os projetos, privilegia-se um olhar que re-posiciona seus protagonistas para além das violências cotidianas sofridas por eles (os motoristas de aplicativos e os transsexuais, respectivamente), permitindo que eles possam ter uma existência para além da realidade, em que sonhar é um tipo de resistência. Assim, Paloma é uma história inocente de casamento, tipo de gênero em que não se está acostumado a ser protagonizado por um corpo trans; enquanto Fantasma Neon transita entre o mundo real e o onírico a partir do gênero musical para falar da precarização dos motoristas de aplicativos. Só que o longa de Marcelo Gomes quer se afastar ao máximo possível dos problemas, perpetuando o sonho (até o momento em que é possível evitá-los), o curta de Leonardo Martinelli a todo tempo interrompe o sonho-musical com algum despertar para a realidade, neste jogo de força entre os dois mundos.

A partir da performatividade da dança e da música, o corpo-trabalhador é ressignificado enquanto um corpo-artístico. Por óbvio, entregadores de aplicativos são mais que meros autômatos, mas pessoas com dignidade que existem para além de sua função. Esta é a ideia básica de Fantasma Neon, enquanto signo urgente denuncista. Por isso, a relação que guarda maior potência no curta de Leonardo Martinelli é a maneira como os corpos dos atores são colocados em diálogo com o espaço das ruas a partir das apresentações musicais, ressignificando a imagem do entregador de aplicativo.

Se o dia-a-dia de trabalho faz com que eles sejam alguém que deve estar sempre em trânsito, cuja presença é ignorada, a não ser pela polícia ou quando um “cidadão comum” tem a passagem interrompida por eles, então em Fantasma Neon os motoboys são colocados para dançar nas calçadas e ruas vazias, em um movimento de ocupação e reapropriação, de se des-invisibilizar, tanto de seus corpos, como também das danças e ritmos populares. Contudo, fica-se a sensação de que a escolha das ruas e espaços públicos poderia ser mais direcionada, para além de paredes pichadas, assim como uma interação da própria coreografia destes personagens com o espaço, complexificando a questão espacial do curta.

Aliás, sempre há um risco de se exigir demais de um curta, mas sinto que para alcançar a plenitude de seu efeito almejado, Fantasma Neon poderia ter trabalhado mais a relação antagônica entre a invisibilidade parte da rotina real dos entregadores de aplicativo com visibilidade dada a eles no musical onírico, com Martinelli se focando no segundo e furtando o filme de um poder dialético que poderia surgir de mais momentos do cotidiano que dariam as danças um poder maior de ruptura e transgressão com a normatividade. 

Inclusive, isso leva Fantasma Neon a uma curiosa contradição. De um lado, suas intenções são obviamente boas, ao querer tirar estas pessoas do espaço de trabalho ao qual elas são presas. No entanto, o filme não estaria fazendo o mesmo quando limita essas pessoas a cumprirem um papel de dançarinos-músicos em um musical? Não se trata de uma rejeição à possibilidade do gênero existir e ser uma arma política, mas é que Fantasma Neon cai na armadilha de ignorar a existência humana daqueles que ele mesmo quer jogar holofotes pelo fato de serem invisíveis. Portanto, tanto para o mundo quanto para Martinelli, os motoristas de aplicativos são, invisibilizados e visibilizados, respectivamente, ainda como motoristas de aplicativos. E assim permanecem, nunca permitindo que se enxergue a humanidade e individualidades para além de suas funções. 

Justamente por esse anti-individualismo do filme, que se volta mais para um olhar coletivo da classe, a intenção de Martinelli em buscar performatividades em muitas de suas cenas não causam tanto efeito. Há muitos planos pensados para evidenciar a presença dos corpos, de ter rostos encarando a câmera, quase como fotografias, mas quem são estas pessoas? O que preenche seus rostos? A fórceps, sem o filme construir algo previamente, não é possível extrair nada deles, a não ser a mais primária constatação de que são motoristas de aplicativos insatisfeitos com suas contradições. Até é possível ver que Martinelli vai atrás de particularidades ao colocar em sequência o mosaico de três histórias (racismo-feminismo-covid) individuais, mas a partir do momento que ele dessincroniza voz e imagem na hora dos relatos, privilegiando o poder da presença em detrimento da narração direta, ele acaba por jogar contra essa possível aproximação humana pelo relato.

Assim como foi falado no parágrafo anterior que Fantasma Neon fica preso ao retrato daquelas pessoas como entregadoras, o filme também fica preso aos seus próprios retratos, ou seja, às suas poses, ao ato de literalmente posar para a câmera, o que parece ser uma saída mais fácil do que se aprofundar de fato. Mas, novamente, estamos falando de um curta-metragem. Com a notícia de que o projeto de longa-metragem foi selecionado para a fase final de Locarno Residency, há de se ter esperança de que as potencialidades que existem no curta possam ser cumpridas dentro de um formato que permite maior aprofundamento.

Fantasma Neon (2022) — Brasil
Direção: Leonardo Martinelli
Roteiro: Leonardo Martinelli
Elenco: Dennis Pinheiro, Silvero Pereira
Duração: 20 mins.

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