Home FilmesCríticas Crítica | Fassbinder: Ascensão e Queda de um Gênio

Crítica | Fassbinder: Ascensão e Queda de um Gênio

por Luiz Santiago
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Artistas que tiveram uma vida destrutiva, que morreram cedo e deixaram uma obra tremendamente marcante como legado são alvo de um fascínio tristonho por parte do público e também de outros artistas, jornalistas e estudiosos, muitas vezes interessados em documentar, representar ou entender a jornada desses “furacões humanos”. O cineasta alemão Rainer Werner Fassbinder é um deles. Ele morreu aos 37 anos, em junho de 1982, deixando uma produção grande em tamanho (44 obras entre cinema e TV, ou seja, ele teve mais filmes e séries do que anos de vida) e principalmente em qualidade e relevância. Em Fassbinder: Ascensão e Queda de um Gênio (2020), película que teve sua campanha de estreia em Cannes frustrada pela pandemia, procura retratar a vida do enfant terrible do cinema novo alemão, focando quase exclusivamente nas partes ruins ou na parte nojenta que compunha a personalidade desse grande diretor.

Quem assina a fita é Oskar Roehler (que em 1997 coescreveu e atuou numa divertida, anárquica e muito inteligente homenagem a Fassbinder, chamada Os 120 Dias de Bottrop), que realiza um trabalho focado nas dificuldades emocionais, no abuso de drogas e no temperamento irascível do ‘biografado’, utilizando os filmes desse artista como marcos dramáticos importantes para a sua maturidade como pessoa e também para pontuar novos relacionamentos e encontros com amigos e artistas. Dos dias no Antiteatro, onde Fassbinder conheceu Kurt Raab e onde já vemos a sua relação longa e tóxica com Irm Hermann (aqui, chamada de Britta), até as filmagens de Querelle e os comentários sobre sua atuação em Kamikaze 1989, vemos os eventos e as pessoas que ajudaram a moldar o grande artista que Rainer foi e como foram fortemente sugados para o seu entorno cheio de gritos, explosões de fúria, mas também momentos de companheirismo e muito amor e dedicação à arte.

O roteiro cria, assim, um personagem odiável desde o início. No entanto não vou levantar a discussão sobre “o quanto isso é exagerado”. Trata-se de uma biografia ficcionalizada e Oskar Roehler, ao lado de Klaus Richter, seu parceiro no roteiro, tiveram essa visão sobre Fassbinder, e é com ela que iremos trabalhar aqui. Essa carapuça de “homem problemático” que o Rainer do longa veste acaba tendo pouquíssimos momentos de mudança, o que torna a jornada relativamente cansativa. O filme tem pouco mais de duas horas e o corte do tempo interno é feito a partir da presença de Fassbinder em alguns festivais ou a partir da escrita e filmagem de alguns de seus projetos, escolha que termina sendo um problema , como explorarei mais adiante.

A impressão que nós temos é que Roehler recebeu alguma negativa legal de Hanna Schygulla (uma das verdadeiras musas de Rainer, com 77 anos no momento de lançamento desse filme), já que sua representação no filme é chamada de “Martha”, e tudo o que tem a ver com ela é basicamente escanteado no filme. Isso evidentemente é um problema, já que Schygulla apareceu em 23 dos 44 filmes que Fassbinder dirigiu e foi a estrela de dois de seus estrondosos sucessos internacionais: As Lágrimas Amargas de Petra von Kant (1972) e O Casamento de Maria Braun (1979), de modo que sua presença efetiva faz falta, inclusive para dar maior sentido à biografia.

Essa jornada caótica é posta na tela emulando a fotografia de Michael Ballhaus, o que pode parecer kitsch ao olhos de muitos espectadores, mas faz sentido diante da obra do diretor homenageado. Como a narrativa é inteiramente construída dentro de uma esfera artística, ou seja, o Fassbinder que vemos aqui está o tempo inteiro mergulhado em um “mundo cinematográfico“, a forte estilização das cores, os cenário típicos de “filmes independentes” e o uso bem particular da trilha sonora (referindo-se a outro colaborador recorrente de Fassbinder, o compositor Peer Raben) ajudam a formar uma máscara fassbinderiana que é interessante porque dialoga esteticamente com o homem que representa.

Um dos problemas que encontramos aqui é que a maneira como a montagem foi pensada. Se fosse para fazer uma aproximação com um trabalho de Fassbinder, diria que esse estilo está próximo de Alemanha no Outono (1978) e A Terceira Geração (1979). No entanto, ver essa passagem do tempo unicamente através de marcos fílmicos ou na ocorrência de festivais de cinema corrói o fio narrativo muito rapidamente, e a despeito da elegância dessas passagens no último ato, o mesmo padrão utilizado no filme inteiro definitivamente não foi a melhor escolha. Vale também citar o tratamento majoritariamente nojento dado a Fassbinder. Apesar de a interpretação de Oliver Masucci não ser ruim, o espectador tem dificuldade de lidar com o personagem, que também se encontra de maneira interessante no último ato.

Fassbinder: Ascensão e Queda de um Gênio é a visão de Oskar Roehler para a vida de um dos maiores diretores da história do cinema. A obra fala muito de seus amores, de seu temperamento difícil, da convivência massacrante que ele representava para todos ao seu redor e para os eventos e sentimentos que marcaram a sua existência e a sua arte. Não temos uma passagem direta por todas as suas obras, nem mesmo por todas as mais badaladas, mas um bom número de seus filmes estão aqui, seja em recriação de bastidores, citação direta ou indireta, cenas de ensaio ou de premiações. Para quem conhece um tantinho a mais da obra e da vida desse cineasta, Ascensão e Queda de um Gênio poderá servir de visita guiada por grandes filmes, alguns deles infelizmente mal representados (como a cena que recria um momento de O Desespero de Veronika Voss) e outros com excelentes referências e visuais e de contexto para aquilo que se estava narrando, como é o caso das filmagens de Whity (1971) e de O Medo Consome a Alma (1974). Para os que conhecem pouco ou nada do Universo fassbinderiano, será uma viagem interessante, alarmante, cheia de solavancos, mas que dará um pouco de noção sobre quem foi essa criança terrível que partiu tão cedo, mas que deixou uma marca gigantesca para o cinema.

Fassbinder: Ascensão e Queda de um Gênio (Enfant Terrible) — Alemanha, 2020
Direção: Oskar Roehler
Roteiro: Klaus Richter, Oskar Roehler
Elenco: Oliver Masucci, Hary Prinz, Katja Riemann, Felix Hellmann, Anton Rattinger, Erdal Yildiz, Markus Hering, Michael Klammer, Frida-Lovisa Hamann, Jochen Schropp, Lucas Gregorowicz, Simon Böer, Antoine Monot Jr., Désirée Nick, Michael Ostrowski, Isolde Barth, André Hennicke, Eva Mattes, Detlef Bothe, David Bredin, Götz Otto, Sunnyi Melles, Christian Berkel, Alexander Scheer, Meike Droste, Wilson Gonzalez
Duração: 134 min.

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