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Crítica | Fausto (2011)

por Luiz Santiago
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Fausto (2011) é viagem poética de Aleksandr Sokúrov, uma livre adaptação do famoso romance de Goethe, datado de 1808. Para tornar a obra palatável ao púbico contemporâneo, o diretor precisou adequar com muito cuidado os principais elementos estéticos e narrativos do original — o espaço geográfico, o figurino, o verbo — às nuances de questionamento e desamparo de nosso tempo, sendo esta a linha que o cineasta normalmente adota em suas produções. Fausto permanece como um espelho da humanidade. Sua busca pelo conhecimento o coloca em uma vanguarda existencial em relação aos outros seres, deste e de outro plano. Ele é o cientista, o ateu, o racional, o experimentador, o homem além do seu tempo capaz de assinar pactos com o diabo a fim de alcançar algo, mesmo que esta seja apenas parte de sua busca interna. Ele deseja, duvida e nega ao mesmo tempo.

Sendo a última parte da “tetralogia do poder” (ou do declínio do poder), composta por Moloch (Hitler), Taurus (Lênin) e O Sol (Hirohito), Fausto, que é a única peça literária dentre os filmes, representa a maior de todas as escolhas de Sokúrov para a  investigação do controle e da ânsia pelo domínio. Sendo um arquétipo da humanidade, Fausto é a maior representação do poder, a nossa espécie em seu puro desejo de controlar. Os simbolismos variam de interpretação a cada espectador, mas toda a nossa estrutura civilizacional está posta no roteiro do filme e engenhosamente relacionada à obra original: a descrença religiosa, o valor ao dinheiro (Mefistófeles é um agiota!), o desenvolvimento cronológico da ciência (Fausto é cientista e filho de médico), a banalização da igreja como instituição, o pleno conflito entre pais e filhos, a proliferação de doenças, mortes violentas, sexualidade bizarra e misticismo (na presença do Homúnculus, um dos símbolos nucleares da alquimia).

Fausto é a Humanidade que transforma a Terra, que subjuga os fracos, que cria ideologias e caminhos para serem seguidos. Neste ponto, em nada ele se difere dos outros três poderosos anteriormente filmados pelo diretor, afinal, também eram humanos, de sorte que Fausto é a representação da condição máxima de todos eles juntos. Mas é importante que se diga que apesar de exercer o poder, Fausto não é a representação da Humanidade passiva, alheia, desconectada das decisões importantes que garantem a sua existência. Observem que ele se opõe à natureza divina, procurando a alma em todos os lugares do corpo. Ele quer ir além do vazio da criação revelado no Gêneses e posteriormente reafirmado no Evangelho de S. João, quando diz que “no princípio era o Verbo”. Há uma sequência inteira do filme dedicada à reflexão dessa passagem, exemplo máximo de que esse Fausto/Humanidade não aceita que “o Verbo era Deus” ou que “a Terra era sem forma e vazia”.

Fausto quer saber o princípio da existência, o que lhe permite existir, onde está a sua alma e qual o seu valor. Sendo um homem em constante busca e sofrendo o vazio e as privações da vida secular — ele não come, não dorme, não ama, não tem dinheiro e é rejeitado pelo pai, que lhe nega até comida — seu caminho natural é a busca por algo que está além e, dado o estado de penúria do mundo real, nada mais parece demasiado ou medonho, então ele se aproxima de Mesfistófeles, o agiota, como quem se sente feliz e salvo.

Sokúrov arquiteta a raiz do poder, seu desenvolvimento e seu declínio quando, ao final de tantas buscas, o niilismo se mostra único: Mefistófeles é apedrejado por um Fausto (morto para sua realidade?) distante de tudo e todos, “muito longe e muito alto”, segundo o próprio roteiro do filme. Após tantas buscas, renúncias e dominação do ambiente e das pessoas à sua volta, o Fausto/Humanidade se vê entre um gêiser, rochas e geleiras, uma combinação de todos os estados dos elementos da ciência que acaba por isolá-lo da sua vila e vida ordinárias. A busca pelo conhecimento a todo custo fez a Humanidade ir além, até no sentido de negar a morte. Mas ao fim de tudo, essa busca exterior não chega a lugar algum a não ser à maior distância entre suas respostas e a satisfação pessoal com elas. Todos caminhos para a incerteza e o isolamento mortais.

A abertura do filme coloca o espectador na posição de observador supremo daquilo que está por vir. Um plano em movimento ininterrupto atravessa o céu estrelado, passa através das nuvens e nos mostra o maior simbolismo de ligação da obra: um espelho (refletor da verdade, da sinceridade e do conteúdo do coração) pendurado em uma corrente (símbolo de elos e relações entre o céu e a terra; entre dois extremos ou dois seres), ao qual se prende um pequeno sino (chamado de atenção, percepção do som, evocação tudo o que está suspenso entre o céu e a terra, estabelecendo uma comunicação entre os dois). Um lenço branco se desprende do espelho e voa até a cidade isolada entre as montanhas, talvez o mesmo lugar “alto e distante” para o qual Fausto vai em companhia de Mefistófeles. A luz é difusa e há predomínio do verde, pelo menos no início, quando somos apresentados à polaridade do filme: o verde do broto e o verde do lodo, a vida e a morte.

As distorções da imagem através de lentes especiais, as tonalidades absolutas em algumas sequências e o destaque para o marrom, o amarelo e o azul são itens a serem observados com atenção. O espectador é capturado pela beleza e a construção dos personagens mais as propostas dramáticas do filme são depreendidas a partir da fotografia, que passou por um escrupuloso processo coloração digital, um trabalho magnífico de pós-produção que atendeu muito bem à intenção de Sokúrov em misturar doença, misticismo e pesadelo através da cor. A recusa do realismo é visível tanto na luz quanto nos enquadramentos e no tipo de lente usada para distender as imagens. Coroando a situação, a montagem possui uma fluidez deliciosa, e apenas um espectador preguiçoso irá reclamar das 2h10min. do filme, que passam com uma suavidade e dinâmica dignas de serem aplaudidas.

Mais próximo do Fausto de Švankmajer do que do Fausto de Murnau, Sokúrov conduziu uma obra de força quase antropológica, com significados múltiplos e que exige muito do espectador. Fausto não é um filme apenas para observação distante. Há pontos do roteiro (inclusive trabalhados um pouco dispersos demais, talvez o único ponto apenas “muito bom” do filme) que nos incomoda, seja pela carga simbólica que traz, seja pela crueza com que trata determinadas situações. Como é uma película que se constrói o tempo inteiro, o espectador dá novos significados a cada período e também vai alterando o seu juízo de valor para com as atitudes dos personagens e o seu declínio de poder.

No mais, Fausto é uma obra-prima na filmografia de Sokúrov. A grande quantidade de citações pictóricas, históricas e culturais, além do glorioso apuro estético e da exímia direção nos permite dizer que estamos diante de um filme que trabalha sem nenhum meio-termo o espírito do nosso tempo. Quanto às referências, se o leitor tiver uma boa memória do filme e procurar pelas telas The Battle of Alexander at Issus ou The Poor Poet ou Jagdunglück, certamente terá uma grande surpresa.

O modo como o poder se desfaz e como o comportamento de busca por um prazer extremo e imediato pontua a nossa sociedade são os mesmos sintomas da civilização que o espelho faustiano reflete. Mas para que esse reflexo não se torne uma refração, é necessário que o espectador não busque resoluções fáceis ou plenas explicações. Assim como a própria essência da humanidade que representa, Fausto é um filme que gera poucas ou nenhuma resposta definitiva. Por outro lado, abre-se um fecundo abismo de perguntas, o abismo da própria existência humana, que mesmo rodeada de criações próprias e mesmo tendo sob seu controle um sem-número de pessoas, bichos e objetos, parece ainda “longe e distante” de qualquer coisa vital, mas cheio de sua eterna vontade de conhecer, possuir e dominar.

Fausto (Faust, Rússia, 2011)
Direção: Aleksandr Sokúrov
Roteiro: Yuri Arabov (livro), Aleksandr Sokúrov, Marina Koreneva e Goethe (livro)
Elenco: Johannes Zeiler, Anton Adasinsky, Isolda Dychauk, Georg Friedrich, Hanna Schygulla, Antje Lewald, Florian Brücker, Maxim Mehmet, Andreas Schmidt, Oliver Bootz, Katrin Filzen
Duração: 140min.

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