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Crítica | A Febre do Rato

por Pedro Roma
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O cineasta Pier Paolo Pasolini foi em sua época uma das principais fontes para uma reflexão sobre as possibilidades de um cinema mais análogo à poesia, narrativamente digo, filmado mais em versos que prosa. Falo em um sentido mais ensaístico que cinematográfico aqui, ele mesmo não se enquadrara nessa categoria quando escreveu sobre a questão, preferia citar Godard, Antonioni ou Glauber. Porém basta uma simples análise de sua obra e se torna óbvio que certamente ele também foi um dos que melhor exercitou as possibilidades desse estilo em seus filmes, sentido esse mais válido para essa crítica, na verdade. Um de seus principais argumentos desenvolvidos ao longo de seus artigos era exatamente a impossibilidade de uma tradução completa, uma equivalência entre plano e oração, afinal, a imagem consegue traduzir e representar um número muito grande de significações facilmente, mas ainda assim, por sua natureza, acaba recaindo na questão do realismo, mesmo quando alterada, ainda mais no cinema. Não é à toa que vários movimentos e questões teóricas do cinema partiram dela: realismo e formativismo; neorrealismo e realismo poético; Méliès e Lumière… Sonho ou realidade? Até a chegada dos teóricos semióticos nos anos 60, essa divisão tipicamente binária e europeia reinou e legou-se até nossos dias.

Quando perguntado sobre as motivações que o levaram a fazer seu Febre do Rato, o sempre polêmico Cláudio Assis disse querer responder à crítica de que é um cineasta do pessimismo, “Ah! não quer que eu diga de uma forma direta, do jeito que é. Tá bom, agora eu digo com poesia”, no qual seu preto e branco possui uma ausência cromática politicamente carregada, “A sociedade é hipócrita. Mas se ela quer que eu a engane, eu engano. Mostro as favelas e a lama do Recife em preto e branco, porque sei que se colocar em cores, ela não vai gostar”. Como um soco no estômago o diretor critica o convencionalismo da espectatorialidade e entrega estilisticamente um discurso mais desafiador, simbólico mas não menos desafiador.

Seu terceiro filme é realmente curioso. Mais leve que os outros dois anteriores, principalmente em relação a Amarelo Manga, contudo ele não é mais ou menos poético. Dono de uma fala de ácida denúncia, o diretor sempre optou por transitar entre o naturalismo e simbolismo. Em seus filmes, o homem é sim animal mas nem por isso maniqueisticamente ruim. Livre de certas convenções sociais, lágrimas, sêmen e sangue tem liberdade para serem as patologias que pintam a nossa existência. Aqui, como ele mesmo coloca, parece se aproximar mais de seu sujeito que da estrutura social em que estão encarcerados. Utilizando-se de seus personagens para expressar indiretamente seu ponto de vista, ele retira várias pretensões dramatúrgicas presentes em seus longas anteriores, cortes rápidos e sequências montadas de maneira quase onírica dão o andamento dessa fuga da realidade socialmente crítica, fazendo valer um discurso indiretamente livre, quase uma viagem lírica aquele universo.

Na trama, o autointitulado (há outra maneira de dizê-lo?) ‘poeta marginal’ Zizo possui um zine que dá nome à obra. Contestador, sua predileção pelo ócio criativo é notável, a história dá foco maior em como ele e sua gente pobre do Recife marginal dá sentido à vida; com álcool, festas e amores. Não à toa aquele microcosmo marginalizado é apresentado num conto de união entre um casal de amantes. A poética de planos é virtuosa, por vezes é difícil não se espantar com tamanha qualidade, por exemplo, na maneira como o alto contraste da fotografia emoldura os enquadramentos, da mesma maneira como a forma que a suavidade das sequências — movimento se combinam com planos parados em imagens simbólicas, presentes principalmente nos frames vistos por cima. A nudez está muito presente na narrativa, parece trazer certa inocência na maneira como é trabalhada, com naturalidade e muito carinho (íntimo).

O elenco, como de praxe, também esta excelente. Contando com Irandhir Santos e Nanda Costa, a obra consegue entregar diálogos bastante filosóficos sem cair em exageros; a direção acerta muito em seu tom, horas indo para o caricato, horas para o naturalista e comum, elementos que acabam envolvendo o espectador pela forma absurda como os conflitos são apresentados e resolvidos,  geralmente com muitos beijos, diga-se. No terceiro ato, a película se encarrega de finalizar no bom tom social típico do autor, a ida da voz periférica pelo grande centro rapidamente acha seu algoz, o Estado. Presente na figura do Exército, do poder simbólico opressor, a sequência em que essa tensão será resolvida é delirante, digna das finalizações mais Fellinianas; um poeta jogado ao mar, desacordado, passa a dizer algo profundo demais sobre nosso cotidiano. Nesse ponto, invés de enveredar por um didatismo que vez ou outra o invade quando tece sua crítica política, ele envereda ao campo estético para rir e ironizar da sociedade capitalista burguesa, que o digam as cenas com a bandeira da pátria em enquadramento, flamulando aos ventos da violência e repressão.

Quando pensado após tanto tempo, após Salò, os filmes ensaio de Godard, A Idade da Terra e mesmo da própria videoarte contemporânea a ela, a questão acerca do hibridismo entre poesia e cinema parece defasada, afinal, querer representar com total fidelidade a realidade vista já não faz mais sentido. Nesse ponto, Febre do Rato marca um renovo para a obra de seu autor do mesmo jeito que o cinema feito em Recife faz para com o cinema brasileiro.

Ter usado uma abordagem P&B foi algo bastante corajoso e auspicioso, quase um tiro no pé por assim dizer, já que ao transitar por um caminho diverso daquilo que fazia, Assis só deixa mais claro o contraste que marca sua obra. Som e fúria, estômago e sexo, a experiência humana transita por meios mais diversos que os dois conceitos captam, talvez tão mais complexo que somente a poesia poderia contemplá-lo. No fim, ele matou seus críticos.

(…) isto depende em primeiro lugar dos poderes e da qualidade da metáfora e das abstrações do cineasta. Mas não acredito que nenhum filme tenha nunca ultrapassado este limite – nem mesmo o mais poético dos filmes

  PASOLINI, Entrevista concedida ao Cahiers du Cinéma, nº 169, agosto de 1965. Vol. II, p. 2891.

Febre do Rato (Brasil, 2011)
Direção: Cláudio Assis
Roteiro: Hilton Lacerda
Elenco: Irandhir Santos, Juliano Cazarré, Matheus Nachtergaele, Tânia Granussi, Maria Gladys, Ângela Leal, Conceição Camaroti, Mariana Nunes, Hugo Gila, Vitor Araújo, Nanda Costa
Duração: 110 min.

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