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Crítica | Febre na Selva

por Leonardo Campos
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O discurso de Spike Lee é de uma “atualidade hedionda”. Principalmente os seus filmes lançados entre o final dos anos 1980 e os primeiros anos da década de 1990, repletos de críticas sociais e apontamentos sobre a questão racial. Em 2014, o cineasta esteve na Bahia, tendo em vista o cumprimento de sua agenda para um documentário sobre a questão racial no Brasil. Guiado pelo deputado Silvio Humberto, fundador do Instituto Steve Biko, na época o único representante do movimento negro na Câmara Municipal de Salvador. Uma das observações mais veementes de seu trajeto é ausência de negros nas estruturas de poder em Salvador, local de população predominantemente negra.

A sua visita também versou sobre a segregação racial no carnaval da cidade. Focado no avanço do Brasil nas dinâmicas políticas e econômicas internacionais, o documentário tinha como proposta mergulhar na contradição das relações raciais brasileiras tensas, tais como os conflitos dos personagens de Faça a Coisa Certa e Febre na Selva, este último, foco da reflexão do texto em questão. Um dos pontos de maior destaque do filme é a demonstração de como funcionam os mecanismos que engendram as relações entre negros e brancos na sociedade, bem como a reprodução das relações de hierarquia, supremacia e dominação. A sua abordagem é “muito” próxima de Peles Negras, Máscaras Brancas, de Fanon. Tal paralelo, no entanto, fica para o desfecho, combinado?

Lançado em 1991, Febre na Selva foi escrito e dirigido por Spike Lee, numa produção que retoma as celeumas de uma sociedade fragmentada, num clima próximo ao abordado em Faça a Coisa Certa. Para contar a sua história, o diretor teve em sua equipe o design de produção de Whynn Thomas, responsável por guiar o espectador pelos diversos espaços narrativos, das casas ítalo-americanas aos redutos de circulação das drogas que aquecem os circuitos criminosos, ambientes captados pela direção de fotografia de Ernest R. Dickerson, eficiente em suas atividades, tal como a condução musical de Terence Blanchard, primoroso e pontual ao “climatizar” o filme com jazz, hip hop, rap, etc.

Assim, Spike Lee faz um bom trabalho ao apresentar no bojo da narrativa os arquétipos ideais para as reflexões que pretende estabelecer: o pastor de postura fundamentalista, o italiano preconceituoso, o afroamericanos que deseja a mulher branca como troféu, dentre outros tipos que gravitam em torno do personagem central, Flipper, arquiteto que almeja reconhecimento profissional, haja vista o seu desempenho e dedicação. Interpretado com eficiência por Wesley Snipes, um homem que na leitura de Stuart Hall, tendo como base o texto de Fanon, “precisa se libertar de si mesmo”. Ele é um profissional brilhante. Discute com os donos da empresa que trabalha por conta da nova assistente branca, enfrenta a acusação de “racismo reverso”, em suma, luta por suas causas sem os mesmos privilégios dos brancos, mas adentra, como qualquer ser humano passível de falhas, nas contradições que regem as nossas existências no plano terreno, repleto de obstáculos e distrações.

Num cruzamento orgânico de três famílias estadunidenses (uma de cor, uma de classe média branca e outra de ítalo-americanos), Febre na Selva aponta, com profundidade psicológica, causas e possíveis consequências do racismo arraigado numa sociedade cada vez mais intolerante. Fala-se muito em multiculturalismo, mas pratica-se pouco a aceitação e compreensão do “outro”. O preconceito e a cultura do ódio funcionam como rizomas em suas ações cotidianas, regidas por códigos estreitos, sem espaço para vacilação. A transgressão de qualquer regra pode custar a vida de um membro do grupo tido como “traidor”, caso a manutenção do distanciamento das raças seja ultrajada.

É preciso compreender, no entanto, a expressão do título, para que os diálogos e ações de alguns personagens sejam interpretados dentro de seus perfis e necessidades dramáticas. A tal “febre na selva” é explicada por Spike Lee como o desejo do negro em ser branco e vice-versa.  Polêmico, ao longo de seus 132 minutos, o filme traz a história discussões sobre a assimilação da cultura negra pelos brancos, além do fascínio pelo branco e a vergonha de si mesmo, elementos que somados ao complexo de inferioridade, completam o círculo vicioso de mecanismos sociais que engendram o racismo.

Parte central da abordagem do intelectual Franz Fanon em Peles Negras, Máscaras Brancas, tais questões são bem pontuais e presentes no texto e no subtexto que demarcam o desenvolvimento do roteiro de Spike Lee, parte dos conflitos que fazem a narrativa progredir, rumo ao indigesto desfecho, com uma das cenas mais devastadoras do filme: um pastor que, ao assassinar seu filho usuário de drogas, acredita ter feito uma “limpeza”, bem como um “ato de bondade” e libertação “daquele” ser humano alvejado por sua bala, oriunda do revólver pousado ironicamente em sua Bíblia Sagrada ao encerrar o “ritual” de extermínio do supostamente condenado.

Há ainda tempo para uma oração de perdão e justificativa diante de uma imagem de Jesus Cristo, pois o pastor pede misericórdia e perdão, alegando que fez o que deveria ter sido feito segundo a sua ótica fundamentalista de justiça divina. Dentre os arcos dramáticos do filme, esse talvez seja o mais impactante. No ano seguinte, o cineasta ganharia mais prestígio com Malcolm X, cinebiografia de um dos maiores representantes da resistência negra no século XX, narrativa épica com quatro horas de duração e muitas lições relevantes sobre a trajetória da população negra no bojo da cultura branca, tema do nosso próximo texto.

Febre na Selva (Jungle Fever, Estados Unidos – 1991)
Direção: Spike Lee
Roteiro: Spike Lee
Elenco: Annabella Sciorra, Halle Berry, Ossie Davis, Ruby Dee, Samuel L. Jackson, Spike Lee, Wesley Snipes, Queen Latifah
Duração: 132 min

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