Três anos depois de deixar o Secos & Molhados, Ney Matogrosso já tinha encontrado seu próspero caminho solo e estava pronto para mostrar uma versão mais sedutora de si mesmo. Foi quando lançou Feitiço, o primeiro álbum pela gravadora WEA/Elektra. O projeto chegou numa época interessante: a disco music estava bombando no Brasil e a censura militar começava a dar uma relaxada. Ney aproveitou esse momento para criar algo mais sensual e direto, deixando de lado as fantasias teatrais de duplos e triplos sentidos ocultos dos primeiros trabalhos.
Na capa, temo o nu frontal de peito de Ney, que causou um escândalo danado, mas era exatamente isso que ele queria: mostrar uma aura romântica e sedutora, cheia de libido, mas sempre com classe. E a imagem casava perfeitamente com o conteúdo do disco. Feitiço mostra um Ney mais maduro e confortável consigo mesmo. Comparado ao álbum anterior, Pecado (1977), aqui ele estava menos preocupado em chocar pelo visual e mais focado em construir um repertório mais sólido. A produção, feita com o Grupo Terceiro Mundo e músicos internacionais como Jeff Porcaro e David Foster, conseguiu equilibrar elementos latinos, brasileiros e internacionais sem soar forçado.
O álbum tem 9 faixas que criam uma jornada sensorial bem coesa. Abre com Bandolero, de Luhli e Lucina, estabelecendo logo de cara o clima latino-americano que marca boa parte do trabalho. A voz aguda e expressiva de Ney conta histórias de paixão e sedução com arranjos de violino e flauta doce que remetem a paisagens românticas. Mal Necessário, de Mauro Kwitko, é uma das pérolas do disco. Aqui, Ney fica mais intimista, explorando as contradições do desejo humano. A letra brinca poeticamente com a ideia do amor como algo essencial e perigoso ao mesmo tempo, enquanto os arranjos delicados criam uma atmosfera que captura o ouvinte. Dos Cruces, de C. Larrea, traz Ney explorando territórios mais melancólicos em espanhol. O trompete de Marcio Montarroyos adiciona um lirismo nostálgico que cria uma atmosfera de bolero sofisticado com influências rio-platenses.
Fé Menino, de Gilberto Gil, é a canção que eu não gosto aqui, pois fica “sobrando” no contexto do álbum. Já na sequência, vem o maior sucesso comercial de Feitiço: Não Existe Pecado ao Sul do Equador, de Chico Buarque e Rui Guerra. Ney pegou esse frevo censurado do álbum Calabar e deu uma roupagem de disco music que funcionou perfeitamente, virando até tema da novela Pecado Rasgado. Conseguiu manter o espírito libertário da música original, mas num contexto mais festivo e dançante. Sensual, de Belchior e Tuca, funciona como uma declaração temática explícita. Ney explora registros mais graves e sussurrados, criando uma intimidade que dialoga diretamente com o conceito do álbum. A gaita de Maurício Heinhorn adiciona elementos folk que enriquecem sem quebrar a unidade. Rejeição, de Ricardo Pavão, explora o lado mais vulnerável do álbum. Ney traz uma performance carregada de emoção contida, onde o bandolim de Ubirajara e o coro masculino criam um arranjo que equilibra rusticidade e sofisticação.
Um dos momentos mais fortes é Angra, de João Bosco e Aldir Blanc. A dupla de compositores encontrou em Ney um intérprete à altura da complexidade da música. É uma das interpretações mais intensas de toda a carreira dele. O disco termina com O Tic-Tac do Meu Coração, sucesso original de Carmen Miranda, de 1935. A escolha mostra o interesse crescente de Ney pelo repertório da diva, prenunciando futuras incursões. Ele consegue atualizar o clássico sem descaracterizar, mantendo o charme original.
Feitiço representa Ney Matogrosso em plena forma, consciente de suas possibilidades artísticas. É um álbum que soube costurar sensualidade e sofisticação, tradição e modernidade, tirando qualquer dúvida sobre o merecido lugar de destaque que Ney Matogrosso já ocupava na MPB.
Aumenta!: Mal Necessário
Diminui!: —
Feitiço
Artista: Ney Matogrosso
País: Brasil
Lançamento: 1978
Gravadora: WEA/Elektra
Estilo: MPB, Música Latina, Frevo, Rock, Pop, Disco
Duração: 34 min.