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Crítica | Ferida (2020)

Maternidade e superação como temas.

por Fernando JG
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Uma ex-lutadora de MMA encontra-se num momento complicado de sua vida após abandonar os ringues. Deprimida e sofrendo com o alcoolismo, Jackie Justice (Halle Berry) vive numa situação precária com seu namorado abusivo e um emprego que mal dá para pagar as contas. Numa oportunidade ao acaso, é cooptada por um treinador para retornar às lutas, contudo, no meio de sua possível ascensão, o filho que ela havia largado com o pai desde que nasceu reaparece e muda toda a dinâmica de sua vida, forçando-a a seguir uma dupla superação: profissional e pessoal. Esse é o argumento que marca a estreia de Halle Berry como diretora, num evidente aceno aos clássicos Menina de Ouro, Rocky: Um Lutador e Touro Indomável. Todas as referências estão lá e a cineasta não recusa o ato tentador de reproduzir um pouco de cada um e assim o faz. 

Halle Berry tenta inúmeros formatos, mistura gêneros, tenta ser catártico, mas nada disso é muito bom senão mediano. Ao insistir numa minutagem de duas horas, acaba pecando em introduzir elementos narrativos demais, informação a perder de vista, quando poderia simplesmente focar num eixo dramático mãe-filho e desenvolver de maneira plena o seu argumento. Há muita gente envolvida e o roteiro não dá conta de resolver todas as amarras feitas ao longo do filme. O desenlace entre Jackie e seu namorado é algo que me incomoda muito, pois é muito claro que a produção não sabia como resolver essa trama e então escolhe cortá-lo, isto é, apagá-lo literalmente da metade para a frente do filme. Isso é uma solução amadora. 

A superficialidade da relação entre Jackie e sua treinadora também é um outro problema de enchimento fílmico e que poderia ser cortado facilmente sem prejuízo algum para a película. Se for para colocar um drama amoroso que aponta para um caminho destrutivamente passional, que ao menos seja desenvolvida, de maneira digna, esse drama. Era aí que o filme tinha potencial de rasgar em emotividade, mas escolhe isso como um problema de segunda ordem, construindo uma Bobbi Buddhakan (Sheila Atim) que até tenta comover, mas que a direção não abre espaço para isso. 

Ainda sobre resoluções, são todas muito simples e não me agrada a reviravolta final, que é, de novo, onde a cineasta poderia dramatizar o seu filme com o fino da ficção. Por que fazê-la perder no ringue mas conferi-la um status de vitória moral? Antes de arriscar e fazer de seu filme uma pancada que atinge a gente em cheio pelo drama por meio de uma melancolia potente, que, afinal, caracteriza as frustrações do cotidiano, a cineasta quer afagar o espectador e fazê-lo sorrir, comprando-nos pela simpatia e pelo final feliz, e por isso propõe soluções tão amistosas para a sua personagem. Fazê-la fracassar dentro do curso do enredo seria por vezes mais sublime do que fazê-la vitoriosa, e ainda mais uma vitória moral, que é uma solução preguiçosa para uma derrota real dentro do ringue. 

Mas existe, por outro lado, uma marca autoral muito forte aqui e que espero ver, de alguma maneira, melhor desenvolvida em outras produções da cineasta. Embora a peça de roteiro não seja inovadora em absolutamente nada, o filme tem a assinatura de Halle Berry. Além de ser abertamente violento em todos os níveis e em todas as tramas existentes dentro do longa, há um toque de diferença distintiva quando decide lidar com uma história sobre família. O dado doméstico é muito forte e ganha ao expor os problemas da maternidade e da dificuldade que é ser uma mãe solteira num mundo que lhe dá pancada de todos os lados. A heroína de H. Berry demonstra uma força redentora que apenas é possível quando amparada pelos laços maternais, que são tão incisivamente marcados dentro da película. O gênero feminino também é muito evidenciado, o que mostra que a cineasta pensou bem na caracterização temática de seu filme. 

Há algumas cenas boas e as lutas, embora sejam todas muito performáticas, ainda conduzem um ritmo razoável de tensão. Contudo, a melhor delas, das cenas, não está nos ringues, nem dentro da casa, mas ocorre num banheiro de um restaurante quando da ocasião de uma crise de ansiedade que acomete Justice. Aqui, a manutenção de uma atmosfera claustrofóbica feita por meio da escolha de um ambiente fechado, uma câmera giratória e respiros profundos da heroína, que tenta puxar o ar a todo custo, faz desta cena a mais elaborada e sofisticada do longa-metragem. As feridas de Justice são diversas e as que menos doem são justamente as físicas. 

Halle Berry é muito mais atriz do que cineasta no primeiro longa-metragem que aparece por trás das câmeras. Com problemas de roteiro, que não são jamais resolvidos por uma direção que está ainda um pouco perdida a respeito do que fazer com o próprio texto, Ferida quer tudo, mas acaba sendo cíclico e profundamente simples dentro das suas resoluções. No entanto, o grande aspecto positivo é a sua assinatura, que me pareceu muito forte e distintiva, o que pode render inúmeros trabalhos futuramente em torno de uma mesma ideia e de uma mesma potência doméstica; este parece ser o dado mais essencial para a sua singularidade enquanto diretora; agora é esperar para ver se ela saberá utilizar disso, da sua marca, como uma característica responsável pela coesão de sua futura obra, isso se tiver uma futura obra. 

Ferida (Bruised – EUA/Reino Unido, 2020)
Direção: Halle Berry
Roteiro: Michelle Rosenfarb
Elenco: Halle Berry, Shamier Anderson, Adan Canto, Sheila Atim, Stephen McKinley Henderson, Valentina Shevchenko, Danny Boyd Jr., Adriane Lenox, Lela Loren
Duração: 138 min.

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