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Crítica | Festa de Família

por Marcelo Sobrinho
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Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.
Liev Tolstói em Anna Kariênina

Quando, em 1995, Thomas Vinterberg, Lars von Trier, Susanne Bier e outros cineastas europeus assinaram o manifesto conhecido como Dogma 95, surgira ali um dos últimos movimentos estéticos cinematográficos de real importância. O objetivo dos dois primeiros diretores, que capitanearam a elaboração dos dez mandamentos a serem seguidos (que alguns apelidaram de “voto de castidade”), era resgatar um cinema que minimizasse o espetáculo audiovisual dos grandes estúdios em detrimento das qualidades narrativas dos filmes. O Dogma 95, olhado pelo distanciamento que só o tempo dá, demonstra um valor muito mais histórico (em termos de experimentação radical de cinema) do que propriamente artístico, sendo a absoluta maioria das obras produzidas sob a sua égide bastante mediana. A exceção maior é, sem dúvidas, o seu longa-metragem fundador, lançado em 1995 por Thomas Vinterberg – Festa de Família.

O roteiro, que trabalha os eventos dantescos que ocorrem durante 24 horas de uma festa de uma família tradicional dinamarquesa, é escrito com malícia, ironia e acidez ferina pelo próprio diretor e seu colega Morgens Rukov. A dupla nos obriga a entrar em contato com o que há de mais sórdido, hipócrita e vil na essência humana e expõe as contradições e as covardias de seus personagens. O cerne de Festa de Família é mesmo o seu roteiro inspirado, que ganha reverberação na crueza da direção, da fotografia e dos demais elementos obedientes às regras do Dogma. Assusta, aterroriza e causa náusea todo o realismo da câmera na mão de Vinterberg, que nos faz assistir como espectadores in loco a todas as revelações terríveis que o filho Christian (Ulrich Thomsen) faz sobre o pai e o suicídio da irmã. Vinterberg acerta no tom. Se ele havia se obrigado a usar uma estética tão dura, que não maquia nada, nada mais certeiro que narrar uma história que desmancha exatamente essas mesmas maquiagens sociais.

E nesse desfile grotesco de cair de máscaras, há momentos de absoluto brilho, como aquele em que Christian faz seu primeiro discurso para expor a todos os abusos do pai contra ele e a irmã durante a infância. O diretor faz diversos cortes secos para mostrar as reações de espanto dos familiares, rindo nervosamente uns com outros, cochichando entre si e olhando-se sem saber bem como agir. Logo depois, Vinterberg evidencia o cinismo das mesmas pessoas, dando seguimento ao banquete como se nada houvesse acontecido. É impossível não identificar em nossa própria sociedade diversas situações semelhantes, em que optamos por fechar os olhos para absurdos completos, compactuando de algum modo com eles. Esse cinismo que mantém íntegro, embora não sem máculas, o tecido social, é extraordinariamente bem encapsulado pela festa em família do diretor dinamarquês. Ele é inclusive aprofundado na figura de Michael (Thomas Bo Larsen), que se revela racista contra o namorado da irmã Helene (Paprika Steen), mas é incapaz de demonstrar qualquer reprimenda ou objeção explícita ao ato do pai. Ao menos inicialmente.

O estilo de filmar sempre tremido, vacilante e com certo tom amador dos diretores do Dogma 95 introduz a Festa de Família inclusive certa interdição ao sublime e à beleza. O estilo não é permissivo com rigorosamente nenhum tipo de abstração ou dignificação da vida, obtido por meio da manipulação da cinematografia, da direção ou da trilha sonora (que deve ser sempre diegética, vale lembrar). No longa-metragem, a vida simplesmente se dá. Com toda a sua aspereza. Além da hipocrisia e do cinismo que ficam evidentes na maioria dos personagens, nasce no seio daquela abastada família um dos sentimentos mais sórdidos que o homem pode experimentar – o da vingança. O ato de Christian será vingado por aqueles que se acumpliciaram do pai, assim como certa fraternidade deformada tomará conta de Michael, que vingará seus irmãos surrando o próprio patriarca. O mais visceral do longa-metragem de Thomas Vinterberg é que tudo parece crível nessa história, que se torna mais tensa na medida em que as consequências vão se avolumando. E todas elas exasperam o público, que reconhece a si mesmo e aos outros em muitos dos comportamentos mostrados em tela pelo dinamarquês.

Festa de Família é um dos grandes filmes da década de 90 mesmo com todo o anti-convencionalismo que o torna tão indigesto à primeira vista. O filme que salvou o Dogma 95 de se tornar um movimento praticamente estéril na produção de grandes obras de valor artístico tornou-se célebre pois transcende o interesse específico pelo manifesto. Considero esse um dos melhores exames das angústias últimas da humanidade. Se há um cinema que produziu tantas obras magníficas sobre desigualdade social, luta de classes e toda sorte de miséria material, Festa de Família é o seu antípoda. A família bem vestida, que chega em seus carros de luxo para uma festa farta em sua mansão, dá início a um improvável processo de auto-destruição. A força implosiva que arruína todas as bases de uma família tão bem sucedida constrange quem acredita nos países nórdicos como um modelo de prosperidade. É terrível mas necessário concluir que teoricamente Festa de Família é a humanidade que deu certo.

Festa de Família (Festen – Dinamarca, 1995)
Direção: Thomas Vinterberg.
Roteiro: Thomas Vinterberg, Morgens Rukov.
Elenco: Ulrich Thomsen, Henning Moritzen, Thomas Bo Larssen, Paprika Steen, Tryne Dyrholm.
Duração: 105 minutos.

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