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Crítica | Festim Diabólico

por Ritter Fan
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Antes que alguém venha ler essa crítica aqui todo pimpão já dizendo que Festim Diabólico é o filme que Alfred Hitchcock filmou em uma plano-sequência só, já vou logo dizendo: não é nada disso. Eu mesmo, quando vi essa obra pela primeira vez há anos, cheguei a achar isso, mas repetidas conferidas e um pouco de estudo revelaram que, apesar de Hitchcock ter procurado nos passar esse efeito (e ele conseguiu, diga-se de passagem), o filme, até por questões técnicas incontornáveis à época, é composto de uma série de planos-sequência longos costurados como se fossem um só. São exatamente 10 desses planos, o maior deles de 9’57” e o mais curto de 4’37”.

E, nesse sentido, é perfeitamente possível afirmar que Festim Diabólico é um laboratório em que Hitchcock resolveu fazer experimentações. Anos depois, o próprio diretor chegou a afirmar que sua experiência “não havia dado certo”, mas, nesse ponto, discordo veementemente do Mestre do Suspense. Ainda que ele tenha que ter sacrificado um pouco da profundidade da narrativa em vista das limitações técnicas que ele se auto-impôs, o resultado é um pequeno, mas eficiente thriller que consegue ter muito mais recheio do que talvez o próprio Hitchcock tenha se dado crédito.

A história, baseada em peça de teatro de 1929 escrita pelo dramaturgo e romancista britânico Patrick Hamilton, é simples, mas macabra: dois amigos matam um terceiro e colocam o corpo em um baú na sala de seu apartamento, que serve de mesa para um jantar ao qual convidam seu professor. O objetivo é provar que é sim possível cometer o “crime perfeito”.

Hitchcock decidiu manter a estrutura de peça de teatro, mas sem fazer teatro filmado, o que potencialmente teria tornado o filme extremamente enfadonho, apesar dos curtos 80 minutos de duração. Com toda a ação se passando quase em tempo real e apenas uma sequência – a de abertura, quando vemos o diretor em uma de suas famosas pontas – passada fora do apartamento de Brandon (John Dall) e Phillip (Farley Granger), Hitchcock trabalhou com enorme engenhosidade e com uma câmera inacreditavelmente fluida e movimentada, com close-ups (como no estrangulamento), planos americanos e planos médios, além de travellings quase que exclusivamente de um lado para o outro do apartamento em linha reta. Para conseguir esse feito, Hitchcock trabalhou em sincronia extrema com a equipe técnica para criar um cenário que pudesse ser movimentado durante as filmagens. As paredes, assim, foram montadas em cima de trilhos e era abertas e fechadas na medida do necessário, com ensaios que envolveram não só os atores, mas também os técnicos responsáveis por mexer em toda a estrutura. Além disso, o ciclorama (cenário de fundo) usado em Festim Diabólico foi o maior usado até 1948, além de um dos mais complexos, pois não só envolvia imagens de Nova York, como nuvens, fumaça de chaminé, luzes e iluminação que se modificavam na medida em que o tempo passava. É um divertimento esquecer o resto do filme e só focar nesses aspectos técnicos que, muitas vezes, passam despercebidos.

E Festim Diabólico ainda foi o primeiro filme do diretor em Technicolor, o que, à época, significava câmeras ainda maiores, que tiveram que ser montadas em estruturas móveis silenciosas especiais, só para complicar a vida dos técnicos. Mas o resultado valeu a pena, apesar dos comentários negativos do próprio diretor. É absolutamente fascinante ver a história se desenrolar ao longo dos 80 minutos de projeção como se literalmente fôssemos o observador onipresente e onisciente.

James Stewart faz o papel do professor Rupert Cadell, convidado de honra para o jantar e quem os estudantes desafiam para descobrir o crime que cometeram. É a primeira da prolífica parceria de Stewart, que já tinha uma bagagem considerável, com Hitchcock e que geraria clássicos inesquecíveis como Janela Indiscreta, a segunda versão de O Homem que Sabia Demais e Um Corpo que Cai. Stewart demonstra muita tranquilidade em seu papel, atuando com sempre atua: passando uma naturalidade quase sobre-humana que poucos atores eram (ou são) capazes de passar. Contracenando com um elenco menos conhecido, mas mesmo assim muito bom, ele acaba dominando toda a fita a partir do momento em que aparece.

É interessante, também, notar um subtexto que, em 1948, era um tabu quase intransponível: a homossexualidade. O filme é todo permeado do assunto e o restritivo – e absurdo – Código de Produção em vigor não pegou “o problema” em razão de um roteiro inteligente que foge da obviedade, de atuações contidas (os atores que fazem os dois assassinos eram gays) e de uma direção sábia de Hitchcock que escancara a situação, mas só para quem souber ler nas entrelinhas. E o mais interessante é que esse aspecto da vida sexual dos personagens nem era essencial à narrativa, mas ele é deixado lá por um diretor bem a frente de seu tempo.

Festim Diabólico marca talvez o verdadeiro início de Hitchcock como o Mestre do Suspense, considerando-se seus filmes seguintes, e é uma pequena joia que só melhora ao longo do tempo e do quanto mais nós sabemos sobre sua interessantíssima produção. Se essa definição fez sentido alguma vez, trata-se de um pequeno grande filme absolutamente imperdível à frente e atrás das câmeras.

  • Crítica originalmente publicada em 02 de abril de 2014. Revisada para republicação em 31/03/2020, como parte da versão definitiva do Especial Alfred Hitchcock aqui no Plano Crítico.

Festim Diabólico (Rope, EUA – 1948)
Direção: Alfred Hitchcock
Roteiro: Arthur Laurents, Hume Cronyn (adaptação), Ben Hecht (não creditado), com base em peça homônima de Patrick Hamilton
Elenco: James Stewart, John Dall, Farley Granger, Joan Chandler, Sir Cedric Hardwicke, Constance Collier, Douglas Dick, Edith Evanson
Duração: 80 min.

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