Ainda no contemporâneo, as filhas de Eva estão condenadas ao sofrimento de proporções bíblicas? Esse foi o questionamento que me fiz enquanto assistia os primeiros episódios de Filhas de Eva, minissérie com desenvolvimento espetacular de todos os personagens, das protagonistas aos coadjuvantes, narrativa seriada que coloca em evidência, um tema bastante debatido na atualidade: a importância da sororidade entre mulheres, a pertinência de uma rede de apoio, tendo em vista lidar com uma sociedade ainda muito misógina, de relacionamentos interpessoais tecidos por muita complexidade, onde os sentimentos afloram de um jeito tão intenso que até mesmo o acompanhamento terapêutico parece não dar conta de tantas questões e ansiedades. A primeira mulher mencionada na Bíblia é uma figura carregada de simbolismo e significados diversos, que se intensificam na contemporaneidade. Por isso, não há como a produção carregar esse nome forte aleatoriamente. A narrativa de sua criação a partir da costela de Adão e a sua interação com a árvore do conhecimento do bem e do mal em Gênesis têm sido interpretada de múltiplas formas ao longo dos séculos. Tradicionalmente, Eva é vista como a portadora da tentação, responsável pela queda da humanidade ao ceder à serpente e comer do fruto proibido.
Essa interpretação, que a retrata quase como uma vilã, tem sido uma base para justificar a subjugação das mulheres em diversas culturas. Revisada ao longo da evolução da humanidade, muitos estudiosos e pensadores contemporâneos veem Eva como um símbolo de autonomia e resistência. Sua coragem ao desafiar a autoridade divina para buscar o conhecimento começa a ressoar com as lutas feministas e a busca por igualdade de gênero. Além disso, Eva representa a complexidade da condição humana. Ela, ao escolher o conhecimento, traz à tona questões sobre a moralidade, a liberdade e a responsabilidade. Na contemporaneidade, isso se reflete no papel que as mulheres desempenham em diversas esferas sociais, desafiando normas e tradições que muitas vezes as limitam. O ato de Eva em buscar o saber e, consequentemente, a sua situação de vulnerabilidade, pode ser um caminho interpretado como um paralelo com a luta das mulheres para serem ouvidas e respeitadas em um mundo que, historicamente, privilegiou a voz masculina.
Foi por essa via que contemplei a personagem de Renata Sorrah na série, uma senhora cansada de viver dentro dos padrões idealizados socialmente. Ela interpreta Marcella, uma mulher que percebe, no dia da comemoração de suas bodas de ouro, que não aproveitou a vida da maneira que gostaria. Num momento inesperado, no evento lotado de pessoas da alta sociedade, ela anuncia que deseja o divórcio. Esse ato reverbera na vida de todos que gravitam em torno do casal. A sua filha, Lívia (Giovanna Antonelli), uma jovem mulher com carreira em ascensão, reconhecida por seu trabalho como terapeuta, mas massacrada pela idealização afetiva estabelecida no casamento com o marido que a trata de maneira ríspida e distante, é uma das principais atingidas pela reverberação do acontecimento. Esse fio narrativo se conecta, ainda, ao cotidiano de Cléo (Vanessa Giacomo), a mais jovem das três, mas que diferentemente da mãe e filha com vida financeira estável, precisa lidar com as adversidades da situação de pobreza na qual se encontra inserida. Assim, ao longo dos 12 episódios, equilibrados na distribuição das ações dos personagens, elas se conectam, uma transformando a vida da outra.
Baseada no livro homônimo de Martha Mendonça, Filhas de Eva foi lançada em 2021 e logo se tornou notória por suas reflexões atuais sobre a condição da mulher contemporânea, tendo como pano de fundo, traições, relacionamentos abusivos, determinismo social quase naturalista e a mencionada sororidade entre mulheres em situações conflituosas. Escrita por Adriana Falcão, Jô Abdu, Nelito Fernandes e a escritora do livro que serve como ponto de partida da produção audiovisual, a série teve direção geral de Leonardo Nogueira, com apoio de Felipe Louzada e Nathalia Ribas, todos competentes na condução das histórias que poderiam acabar no melodrama vulgar se estivessem nas mãos de profissionais menos experientes. Os desempenhos dramáticos, em especial, das protagonistas, é outro ponto assertivo da produção televisiva disponibilizada no streaming e, logo adiante, transmitida na TV aberta.
Numa proposta narrativa que pode funcionar como crítica ao conservadorismo que dominou o território brasileiro recentemente, Filhas de Eva apresenta mulheres em busca de libertação diante de um punhado de amarras colocadas como obstáculos em seus respectivos cotidianos. Todas elas, alinhadas com o simplório desejo de ser feliz, precisam lidar com as suas escolhas, figuras ficcionais esféricas que também sabem reconhecer os pontos onde estiveram equivocadas em suas trajetórias, numa dramaturgia que evita o binarismo heroínas versus vilões. Alguns homens, aqui, se posicionam como antagonistas, justamente por ser essa uma realidade que infelizmente temos de lidar do lado de cá da tela. Basta conferir os telejornais, redes sociais, em linhas gerais, conteúdos informativos diversos para acompanhar casos absurdos de abuso e violência quando um dos lados do relacionamento decide desatar um nó e seguir adiante por outras vias. Com direção de fotografia de André Horta, acompanhamos as personagens em imagens que prezam pela beleza, sem a preocupação de apenas contar algo.
Esteticamente envolvente, Filhas de Eva traz cenários que coadunam com as necessidades dramáticas das protagonistas. Setor assinado por Joana Estrella e Clara Rocha, a visualidade da narrativa demonstra coesão nos ambientes luxuosos de Marcella e Lívia, em contraste com a pobreza de Cléo, uma das mais sufocadas personagens dessa história de muita beleza, mas também tristeza. Com trilha sonora de Marcel Klemm, também eficiente na tessitura das histórias encapsuladas ao longo dos episódios com média de 50 minutos. Como versou Rita Lee em uma de suas músicas mais emblemáticas, “toda mulher quer ser amada”, “toda mulher quer ser feliz”. É assim que as mulheres dessa série criam as expectativas para a pavimentação de um futuro incerto, tendo as sombras do presente opressor como termômetro para a geração de energia que sirva como combustível para um empurrão que se estabeleça como definitivo. Diante das pressões de diversos tipos, expostas nas situações vivenciadas por elas ao longo do enredo, a conexão entre pessoas que buscam a identificação e, consequentemente, o reconhecimento de problemas similares em suas trajetórias é um dos tópicos mais emblemáticos dessa série. É a tal da sororidade, que precisa não apenas ser refletida, mas também praticada.
Filhas de Eva (Brasil, 8 de março de 2021)
Criação: Adriana Falcão, Jô Abdu, Martha Mendonça, Nelito Fernandes
Direção: Felipe Louzada, Leonardo Nogueira, Nathalia Ribas, André Felipe Binder
Roteiro: Adriana Falcão, Jô Abdu, Martha Mendonça, Nelito Fernandes
Elenco: Renata Sorrah, Giovanna Antonelli, Vanessa Giácomo, Débora Ozório, Dan Stulbach, Cacá Amaral, Marcos Veras, Analu Prestes, Erom Cordeiro, Cecília Homem de Mello, Jean Pierre Noher, Juliano Lobreiro, Nina Tomsic, Aldo Perrota, Bia Guedes
Duração: 44 min por episódio, 12 episódios
