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Crítica | Filho de Boi

por Davi Lima
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Filho de Boi é um filme de fotografia emulativa de um documentário, a ficção aparece como um exercício de memória, servindo para contrapor uma narrativa progressiva mais comum. Não existe nesta obra uma história comum de um protagonista que aprende algo para crescer. Na verdade, é como se constrói o que ele precisa lembrar do que já tinha para formar seu crescimento humano. Por isso a terra rural de Tamboril, na Bahia, que é captada por essa fotografia documental, até parece romantizada pelo efeito de luzes, quando na verdade é um naturalismo que se cimenta na compreensão além da perspectiva dos fatos julgados dentro da obra, fazendo o espectador captar cenas aparentemente isoladas que o colocam, como o protagonista João (João Pedro Dias), na ação de não esquecer quem era o seu pai.

A ação dos personagens soa como natural, então, captar a corrida de um ator soa como uma fuga, até o filme revelar o real objetivo do personagem de encontrar um túmulo para se lamentar. Esse é o princípio que prolonga o filme, contrapondo o objetivo dessa corrida numa história nordestina onde o protagonista João é humilhado e caçoado por ser filho de boi, termo pejorativo para quando a mãe larga o pai e o filho. Essa correlação do caminhar narrativo e de como a imagem parece investigar para contar é o que vai exacerbar por vezes algumas elipses na montagem do filme, de forma que a dramaticidade não soa progressiva nem reveladora, e sim um amontoado selecionado de cenas que tentam emular esses dois processos. Mas isso existe porque é como no começo do filme, a definição da morte de um palhaço e um encontro de um garoto chamado João com um anão de circo, quando o protagonista procurava o mugido de um boi. 

Nada se conecta didaticamente, e a montagem preserva isso para harmonizar com o visual documental, enquanto a ficção usufrui disso para ser ainda mais dramática. Por isso, a humilhação de João e seu anseio de fuga não é posta como drama principal, e sim espalhada na trama quando ele descobre sobre o pai e o que este descobre sobre o filho. Quando se observa que o protagonista trabalha com o gado, e em outra cena bem posterior, mostra outros garotos brincando no lago, os mesmos que chamam João pela primeira vez de “filho de boi”, imagina-se que a grande questão é a perda da infância, em que o filme progride para o drama de um personagem que quer fugir para crescer espiritualmente, qualitativamente, porém a inspiração documental é a investigação do que já existe, que por meio da ficção o espectador pode fazer um percurso diferenciado que consta da fuga da sempre reduzida delimitação da terra sertaneja como sem saída.

Quando João é chamado de Menino Pássaro, quando o personagem Salsicha (Vinicius Bustani), dono do circo, nomina-o assim para fazer de João o palhaço no circo, parece que o filme traz de volta o crescimento do protagonista no caminho de sair de sua terra, a clássica narrativa de insatisfação justificada por humilhação e pela vida aparentemente sem vislumbre. Apenas com o circo que viaja pelo país é possível trazer uma vida melhor. Essa é a resistência do sertanejo, como Euclides da Cunha escrevia em seus primeiros capítulos de Os Sertões. Porém, o que não se sabe é que essa visão cultural simplifica qualquer vida sertaneja, e a história de João demonstra como não há a força que nasça da terra, ou que se aprenda naturalmente a resistir em meandros de determinismo.

Logo, o filme não trata Tamboril com romantismo, nem qualquer anseio de aventura do protagonista. O ar documental da fotografia busca mesmo é convidar o espectador ao naturalismo, não ao realismo. A noção de realismo seria aquela que traria, por exemplo, dimensões realistas também à ficção, envolvimentos mais dramáticos em que não há aberturas tão concretas para admiração e sim desenvolvimento da horizontalidade e problematização da realidade. Neste filme, o que se provoca é o naturalismo, onde a terra gravada em teores documentais consta do embelezamento ensolarado e contato com terra e animais. Essa busca pela natureza deixa em suspensão com o limite documental que o ambiente não é ruim nem bom, ele existe, e que a percepção era delimitada por quem participasse e como participasse dela. Por isso, há planos que se confundem com a visão de João, insurgindo memórias pertencentes apenas ao filme, com planos detalhes que são cenas de transição, apenas, e planos abertos que mostram o céu para a maior fluidez de uma montagem já abrupta.

São esses aspectos que vão trazendo o naturalismo, e por isso fundamenta na mente do público uma ilusão cíclica da terra documentada, ou de fuga completa do protagonista, mas a proposta do diretor Haroldo Borges é dar valor ao ambiente como uma ambiguidade crescente aos poucos, especialmente na descoberta sobre quem era o pai de João naquele contexto. Todas as discussões entre os personagens, interpretados por João Pedro Dias e Luiz Carlos Vasconcelos, como pai, podem ser consideradas realistas, no entanto a edição comporta o drama naturalista, aquele que se pinta ou fotografa como representação para formar cenas isoladas que vão montando algo implícito na aparente jornada de fuga. 

Dessa forma, o circo e tudo que é apresentado desde a primeira cena quanto à morte de um palhaço, mais do que peças pregadas para se compreender a diferenciação da jornada, são pontos de ambiguidade em que João parecia tanto se encantar com a ideia de sair de Tamboril. Não se baseia, mais uma vez, no ambíguo realismo de matizar o bem e o mal, e sim no naturalismo que coloca a ideia do palhaço como uma figura que até na morte pode fazer alguém rir, ou da humilhação de João na sua cidade não ser mote de questionamento para ele querer ser palhaço, pois com isso ele vai criando coragem, em como Salsicha e o circo vão sendo a amizade que ele não teve. Chega a estar mais perto do simbolismo, do ideal que vai se formando, e por isso soa tão imprevisível e diferenciado precisamente com a fotografia documental, pois permite ao espectador permanecer na história de ficção contínua, mas a investigação desse filho de boi, que também envolve o pai.

Aí sim, com ele o questionamento existe, quando o pai indaga a correlação do palhaço com a vergonha social ser uma provocação utilitarista do circo, mesmo que o público que assiste ao filme possa identificar na naturalidade dos tons documentais que a índole do circo não pertence a desmoralizar João, e sim à noção de aventura e poder acolhê-lo. Então, no exercício de memória e com a montagem aparentemente difusa para quais cenas caminha em sua ordem, é que vai se formando a música do sertanejo, a arte de resistir no próprio caminho de fuga. Essa é a complexidade do sertão, nem só fuga nem apenas resistir à terra em luta para ficar, e sim a compreensão da morte do vaqueiro para o seu próprio meio social também existe, onde o boi muge e morre na cerca, e ser o maior sanfoneiro da região não o impede de ser humilhado por uma família despedaçada.

João é a representação dessa riqueza da humanidade do sertão, assim como seu pai, que aprende a arte de resistir que se baseia em enfrentar. Não é uma conclusão de idealismo, ou realismo, muito menos naturalismo, que o filme até usa como meio de contar sua história, e sim o baião de Luiz Gonzaga na música A Morte do Vaqueiro. Algo bem único, espantando, por exemplo, o determinismo que o naturalismo provoca, pois devem morrer noções abstratas ou concretas de que a resistência do sertanejo é na base do crescimento e aprendizado na fuga, ou que tudo suporta, e sim na base da memória do que é de fato sua cultura que ele próprio, o sertanejo, constrói, que nem é isolada ou sem movimento. Por isso, a corrida dentro da terra, entre as árvores de galhos secos, não significa um escape, pode ser a procura pelo palhaço, pelo vaqueiro ou pelo boi morto. Tal morte não se prende à tristeza, refere-se à integralidade do sertão em seus sons e imagens, que há vida para se observar e terra para se voltar para enfrentar as cercas sociais.

Filho de Boi (Filho de Boi) – Brasil, 2019
Direção: Haroldo Borges
Roteiro: Paula Gomes, Haroldo Borges
Elenco: João Pedro Dias, Luiz Carlos Vasconcelos, Vinicius Bustani, Wilma Macedo, Jonas Laborda
Duração: 91 minutos

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