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Crítica | Filhos do Medo

por Leonardo Campos
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Em 1979, o cineasta David Cronenberg já tinha se estabelecido como um realizador subversivo. Enraivecida na Fúria do Sexo e Calafrios, as duas produções antecessoras com a abordagem visceral do corpo humano, tiveram recepção caótica, em especial com a crítica, por trazer a tona discussões que exploravam questões nada agradáveis para o turbulento contexto histórico que permeava a década em questão, próxima ao seu momento de virada quando Filhos do Medo foi lançado. O novo horror comprovou mais uma vez o interesse de Cronenberg pelo lado obscuro da ciência e suas catastróficas consequências quando quem a manipula é tomado pela ambição e desejo de poder. É quando partimos do filme para as leituras que gravitam em torno de sua existência. Retomar Filhos do Medo em 2020 é rememorar O Império do Grotesco, famosa publicação acadêmica de Muniz Sodré e Raquel Paiva, um desses textos lidos na seara das humanidades, quando o nosso foco é estudar Literatura e Cultura.

No livro, os autores trazem em um determinado trecho, considerações sobre o cinema de Cronenberg e a relação da humanidade com o corpo pós-biológico, terminologia utilizada para retratar as modificações sofridas quando a ciência e a tecnologia ultrapassam as barreiras do que é considerado imaginável, numa travessia que vai além das dimensões físicas a que estávamos ou ainda estamos acostumados. Na simbiose com o mecânico e com o humano, o corpo se apresenta tematizado em simbioses e aberrações que assustam e fascinam, concomitantemente, numa discussão que reflete os limites alcançados e os limiares que ainda iremos galgar com evoluções de ordem tecno-científica. Algumas questões de Cronenberg ainda são bastante atuais, outras pedem um olhar mais diacrônico, mas não deixam de ser uma fonte de exploração da condição humana mergulhada num cenário de mudanças que nenhum outro século testemunho de maneira tão frenética e impactante em nossa dinâmica comportamental cotidiana.

Diante do exposto, Filhos do Medo pode ser interpretado como um filme sobre personagens em profunda degradação. Como disse o cineasta numa entrevista, é a sua versão de Kramer vs. Kramer do horror. E misógino, afinal, por sabermos que se trata de um filme tomado por questões biográficas, como deixar de imaginar que o enforcamento numa cena próxima ao final não é uma expressão do gozo que o cineasta só podia executar, dentro dos limites da civilização, apenas no terreno da ficção? Logo na abertura, acompanhamos o Dr. Hall Raglan (Oliver Reed) em plena ação com um de seus pacientes, numa sessão aberta ao público. Ele é gerenciador do Instituto Somafree e o seu experimento em questão envolve a humilhação do paciente exposto até o instante em que a raiva/ira toma todo o seu corpo e mente e algumas chagas aparecem em seu corpo. Versão do cientista louco sempre presente em suas histórias do período, o tal médico desenvolve um estudo sobre a manifestação de sentimentos na tessitura do corpo humano. A materialização dos sentimentos deste paciente são parte do que ele chama de “psicoplasmação”.

Os enfermos enxergam no doutor a última esperança da terra. O seu assistente se questiona em alguns momentos, mas ainda assim, segue a agenda prestigiada de Raglan, também bem-sucedido na seara da literatura especializada, haja vista a sua publicação de A Face da Ira, livro onde disseca os seus estudos e investimentos em pesquisa. Na cena descrita anteriormente, alguns aplaudem o médico, mas Frank (Art Hindle), no papel de protagonista, observa tudo com desconfiança. O receio vai além quando ele chega em casa e observa a filha Candy (Cindy Hinds) cheia de marcas. O que teria ocorrido? A ida ao local era apenas uma visita da menina a sua mãe Nola (Samantha Eggar), internada por distúrbios psicológicos e num estado de manutenção da saúde mental. A desconfiança não abre precedentes para a paranoia. O pai de Nola decide visitar a filha, mas é impedido pelo médico aparentemente charlatão. Deste ponto, as coisas começam a ficar ainda mais fora do controle, perda de rumo que segue os personagens até o desfecho ambíguo e sem a sensação de felicidade comum aos encerramentos no cinema comercial.

Frank também não se contenta com os desdobramentos e com uma série de mortes próximas, do ex-sogro, da professora de sua filha, dentre outros, parte para uma investigação mais profunda. Quem são essas criaturas que se parecem com crianças e assassinam violentamente algumas pessoas próximas? Descobriremos logo mais se tratar dos monstros gerados pelo útero externo de Nola, parte da experiência descontrolada da clínica. Elas foram concebidas com base na manifestação da personagem que tem um passado envolvido em abuso sexual e outros conflitos. A professora que flerta com seu ex-marido, o pai provável estuprador de sua infância e outros listados na mente perturbada de Nola entram na sua lista da morte. Ela, por sua vez, não suja as mãos de sangue em nenhum momento. As suas crias estão aptas para o principal exercício programado diante de suas tenebrosas existências: matar, por encomenda, numa transferência e exteriorização do mental para o físico, uma psicoplasmação em descontrole.

As tais criaturas são versões ambulantes dos sentimentos internos de sua ex-esposa degradada psicologicamente, mas apta a gerar estes monstros que nascem sem umbigo, tampouco órgãos sexuais, algo que comprovam a sua permanência perecível, existência temporária apenas para o exercício da destruição. Sem capacidade de se reproduzir, estas figuras monstruosas parecem crianças, mas possuem mãos enrugadas e rostos deformados. Um espetáculo do grotesco. Aqui, o cientista responsável pela criação maldita é alvo de sua própria experiência. É um exemplo de derrota que David Cronenberg abordará mais adiante, noutros filmes da década de 1980, temática que como sabemos, será ensaiada constantemente pelo cineasta, em nuances diversas, complementares e responsáveis por tornar o seu cinema tão sólido e importante para discussões filosóficas que vão além de alucinações do pensamento criativo e se firmam em situações reais, metaforizadas ao longo dos 92 minutos deste filme aterrorizante.

É possível perceber que Filhos do Medo segue uma condução estética avançada, num patamar diferenciado do cineasta, mais consciente de seu processo de produção. Na direção de fotografia, Mark Irwin traz quadros mais assertivos para o desenvolvimento da ação, com uma paleta de tons que dialoga de maneira eficiente com o design de produção de Carol Spier, profissional que assina a primeira de uma longa parceria com o cineasta. A luz na narrativa traz um tom clássico ao conteúdo que não chega a ser tão agitado e agressivo como as abordagens da morte em seus filmes anteriores, mas ainda assim é visceral e relativamente indigesto. Os cenários apresentam uma adequada direção de arte, com uso constante do vermelho em situações de contraste com as demais cores da paleta, tom também presente na capa de chuva da criança que é semelhante ao figurino utilizado pelos “monstros” da narrativa em determinados trechos. Se você foi remetido ao denso Inverno de Sangue em Veneza, de 1973, não se engane. Há alguma coisa, nem que tenha sido mera coincidência dos envolvidos. Ou talvez, uma ilação muito extraordinária nossa.

Destaque para o também adequado design de som de Peter Burgess, em consonância com os temas da narrativa, isto é, “um cinema” de incômodo, da retirada de qualquer um de sua zona de conforto, em especial, nos momentos finais, quando os processos científicos são expostos e descobrimos as origens do que permeia o horror em toda a história. Filhos do Medo é uma produção de primeiros encontros também na música, pois demarca a primeira parceria com Howard Shore, aqui ainda iniciante e constantemente dedicado em relacionar o pavor dos conflitos narrativos com acordes da trilha de Bernard Hermann em Psicose. Há uma cena bem curiosa, do protagonista em busca de uma das criaturas originadas do ventre de sua ex-esposa. Há uma cortina, uma abertura súbita que não revela nada, mas nos antecipa o susto que vem logo depois. Não é à toa que uma morte se desdobra no final da passagem, numa relação intertextual, planejada ou não, mas com ressonâncias de Alfred Hitchcock.

Outros momentos da trilha também retomam a clássica faixa da famosa cena do chuveiro, numa composição ainda apenas acima da média de Shore, mas que se faz sedutora e eficiente em seu trabalho de colaboração na construção da atmosfera proposta por Cronenberg. Ademais, no livro O Artista Como Monstro, de William Beard, especificamente na edição de 2006, o autor escreveu que neste filme, Cronenberg escapou das temáticas de cunho mais social para mergulhar em seu denso processo de divórcio, algo que envolveu uma briga judicial em torno da guarda de sua filha. Diante dos fatos, não há como escapar do fato de que em Filhos do Medo, o cineasta traz para a trama, alguns detalhes de sua biografia. É algo, inclusive, que ultrapassa os rumores e matérias pretensiosas de revistas de celebridade. Interessante observar como as questões “autorais” começam a ganhar maior forma em seu cinema ainda em fase de expansão. Na seara dos destaques, temos que delinear os efeitos especiais de Allan Corter e a maquiagem de Dennis Pike, partes importantes, mas não protagonistas de um filme de horror visceral também assustador na seara dramática, sem se tornar apenas um mero espetáculo de violência física, algo que nas mãos erradas, teria se tornado um equívoco ou mais um show de horror bizarro.

Filhos do Medo (The Brood) — Canadá, 1979
Direção: David Cronenberg
Roteiro: David Cronenberg
Elenco: Art Hindle, Cindy Hinds, Henry Beckman, Nicholas Campbell, Oliver Reed, Reiner Schwartz, Robert A. Silverman, Samantha Eggar, Susan Hogan
Duração: 100 min.

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