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Crítica | Fitzcarraldo

por Fernando JG
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Discussões em torno do que possa ser a melhor obra de um autor tão profícuo como Werner Herzog geralmente sempre acabam sem uma conclusão decisiva, até porque é um debate que envolve muitas questões subjetivas. São mais de 50 filmes no currículo e sempre tem uma obra ou outra que acaba ganhando um relevo enorme em cada fase de sua carreira, como por exemplo, o recente O Homem Urso. Mas acabou que foi inevitável, e não sem motivos, que Fitzcarraldo tenha se tornado o filme da sua vida. E mais: um dos filmes mais ambiciosos e de difícil gravação dentro da história cinematográfica, sendo definido pelo próprio cineasta como: “uma história do desafio ao impossível.” Com uma produção que, de tão grandiosa, espanta, a película de 1982 mostrou com a passagem do tempo o quão insuperável ela se destinava a ser. É custoso acreditar que um filme seja insuperável, e eu mesmo não acreditava de todo nesta ideia até assistir ao Fitzcarraldo pela primeira vez. Foi então que eu redimensionei e repensei a noção de obra-prima. 

Aguirre – A Cólera dos Deuses já tinha mostrado o que ele era capaz de fazer com uma câmera em mãos, e também no barroco O Enigma de Kaspar Hauser, mas é em Fitzcarraldo, dez anos após Aguirre, que Herzog chega em lugares que poucos chegaram, e que outros nunca chegarão. Com feições dantescas, o longa atravessa o inferno numa travessia do oposto e alcança os céus. Assim como Jodorowsky propõe uma valsa no meio de um deserto em El Topo, Herzog aspira construir uma casa de ópera no núcleo da floresta mais selvagem, fatal, enigmática e intocada da América do Sul, colocando civilização e natureza uma contra a outra em um combate arrebatador. 

Há, é verdade, comparações com a produção de Apocalypse Now e Holocausto Canibal, por conta de todo processo desastroso nas filmagens. É uma relação que vem à mente de modo inevitável. No entanto, o filme de Herzog se destaca porque, em todas as suas características mais cerradas, seja pela técnica ou pela temática, demonstra ser a manifestação mais próxima da experiência do sublime no cinema – e já defino logo a noção de sublime: aquilo que é, devido à sua grandeza, inefável, inenarrável, que tem uma gravidade tamanha que torna-se inalcançável, levando o filme a inclinar-se sempre para aquilo que é maior e muito mais divino do nós, sempre querendo alcançar o extraordinário e o além-humano. E não me espanta que seja essa uma produção alemã, nacionalidade esta que ofereceu ao mundo e à filosofia moderna a reinterpretação do conceito de sublime. O filme espanta pelas figuras da natureza, pela ambição e estimula o espectador a desacreditar do que está vendo diante dos seus olhos. 

Apesar disso, há denúncias sobre a destruição natural, os graves danos sofridos pelos nativos e pelos atores, a exploração que parte do europeu diante das populações ribeirinhas, etc. É um filme controverso e que não consegue escapar desse status. São pontos discutíveis, no entanto, grandes filmes cometem grandes erros. Se um cineasta aspira à grandeza, então há de esbarrar, necessariamente, no risco, na falha e no erro. Do contrário, se existe o medo da falha, então contente-se com o mediano. Grandes filmes não nascem sem riscos. Em razão disso, o longa por diversas vezes quase teve de ser abandonado. 

A película se inicia com uma imagem suspensa, filmando por sobre as nuvens toda a floresta abaixo, coberta de névoas. A partir daí, o que acompanhamos no enredo fílmico é o plano audacioso de um sujeito mítico chamado Brian Sweeney Fitzgerald, o Fitzcarraldo, que tem a intenção épica de construir uma grande ópera, a maior do mundo, na selva amazônica e trazer o seu grande ídolo Caruso para lá, para Iquitos, para inaugurá-la. Ele falha em conseguir verbas para consolidar o projeto, pois ninguém acredita que isso poderá dar certo, e então Fitzgerald decide explorar a cultura de borracha da região para levantar alguma fortuna e concluir o seu sonho. 

Fitzgerald encontra um terreno para a exploração seringueira, no entanto, o território é de difícil acesso e para acessá-lo ele precisa atravessar um trecho perigoso em que dois rios se cruzam. A maneira mais segura de chegar à ilha seringueira é por um atalho em um terreno montanhoso, fatalmente íngreme. Mas como passar o barco de três andares por terra firme? E é neste ponto que acontece a inacreditável cena da navegação em solo filmada por Herzog, puxada por 1.100 índios terreno acima. Daí em diante, a ambição de Fitzcarraldo toma contornos diversos, e o próprio longa se constrói numa encruzilhada entre produzir um filme impossível e dar conta de narrar e realizar o sonho inalcançável de seu próprio protagonista. 

Apesar de o filme basicamente se concentrar nesta premissa, o que é importante não é a tensão para o grande momento, para um clímax, como nas narrativas tradicionais, em que comumente esperamos pelo o ápice. Até por conta disso, não há como falar em spoiler, muito menos naquela estrutura básica da narrativa em que ela adquire sentido a partir da peripécia, ou plot-twist. Há grandes momentos em todos os atos, e é como se o longa propusesse uma apreciação contínua de todas as suas partes. A película de Herzog convida-nos a perceber como o cineasta trabalha brilhantemente, junto de seu ator-estrela Klaus Kinski, todos os aspectos técnicos e temáticos da trama enquanto acompanhamos o percurso e os feitos de seu protagonista. Em arte, o que importa é o como, e não o quê. 

A intenção contemplativa é tamanha que, não raramente, o plano de maior destaque na estrutura é, de certo, o plano-aberto – que dá conta de captar a vastidão do território, da natureza, do caudaloso Rio Amazonas e da floresta vista de cima. A ópera oferece uma unidade clássica para a estilística do filme, que trabalha em harmonia com todos os seus aspectos compositivos. É um filme em que o todo é muito importante. 

Apesar do esteticismo ser impecável, existe, ainda, uma temática delicada que é uma consequência da própria história enquanto disciplina. O que é a presença desse europeu em solo americano em busca da exploração seringueira, senão mais uma reverberação de uma atitude colonizadora? A tensão existente entre Fitzgerald e os nativos, ou melhor, entre o europeu e o indígena, desenha bem uma problemática da função histórica das terras do Sul: servir como fonte de riqueza e exploração. Este ponto é interessante pois, mesmo sem querer, Herzog, ele mesmo, encarna essa figura colonizadora e exploradora quando decide vir à América gravar este filme, e não à toa ele é rechaçado pelos nativos. É um filme sobre exploração? Com certeza. É um filme que, em sua produção, domina e explora? Sem dúvidas. 

Mas não é só isso, é sobretudo sobre um sonho impossível, como sutilmente sugere o nome do documentário do filme: Burden of Dreams. Não é apenas o sonho de Carraldo, mas também de seu cineasta. A ambição do personagem é nada mais, nada menos, que um espelho do seu criador. Herzog é Fitzcarraldo. Um homem que propõe um enredo do impossível, e cuja produção deste enredo se mostra ela mesma impossível e dificultosa, demonstra, senão, que o criador reflete a si mesmo em sua própria criação. E, por uma coincidência, o personagem passa a ser interpretado por Klaus Kinski, um dos atores mais problemáticos e explosivos que Werner já trabalhou, e que oferece ao protagonista uma postura impecável, numa atuação sem falhas. A relação conflituosa e frutífera entre eles resulta no documentário Meu Melhor Amigo (Mein Liebster Feind – Klaus Kinski, 1999).

O longa conta com cenas essenciais que concentram toda a ideia da proposta fílmica, como o toque das mãos entre o índio e o europeu, com um enfoque fechado no momento em que as mãos se esbarram em cumprimento, evidenciando esse contraste entre culturas. Se o barco subindo a montanha representa toda a metáfora da ambição e da impossibilidade que permeia todo o clima dentro e fora das câmeras, não é com indiferença que devemos assistir a um momento fundamental, que é o embate atmosférico entre civilização e barbárie quando a ópera é entoada no cerne do Amazonas, ressoando do topo da embarcação para dentro da floresta. 

Se tivesse de definir Fitzcarraldo a partir de uma imagem, então teria de ser, obrigatoriamente, quando Fitzgerald está no topo do barco segurando a sua vitrola clássica enquanto observa os ruídos da natureza mais isolada. Preso dentro de um barco no meio do mais alto Rio Amazonas, prestes a ser atacado pelos nativos mais selvagens que o intimidam com barulhos marciais dentro das matas, cercado por inimigos invisíveis em que só ouvimos os seus ruídos ameaçadores, Fitzgerald executa, em sua vitrola, uma ópera de Caruso, num eco que ressoa floresta adentro, e então tudo o que era barulho torna-se silêncio. Não um silêncio vazio, mas é como se a floresta, e tudo o que ela resguarda de mais perigoso e iminente, parasse por um momento em contemplação diante da beleza de uma ópera entoada pelo homem que Fitzgerald oferece a vida. Depois desta cena, Werner Herzog imediatamente transformava o seu Fitzcarraldo em uma obra-prima.

Apaixonado pela América do Sul e pelas referências literárias e estéticas desta região, como podemos ver na referência ao Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade, 1969) em seu Kaspar Hauser, além de inúmeras referências ao Cinema Novo e ao tropicalismo brasileiro, o filme conta com as participações de Milton Nascimento e do Grande Otelo. Ganhador do prêmio de melhor diretor em Cannes e no festival espanhol San Sebastián, entre outras indicações de melhor filme, a película de Werner Herzog consagra o estilo cinematográfico do cineasta, sintetizando e evidenciando toda a sua capacidade e poder criativo, que são articulados em nível máximo dentro de seu longa, cuja finalidade de canonizar a sua própria figura enquanto criador e o seu cinema enquanto produto autoral é atingida com sucesso e sem ressalvas. 

Fitzcarraldo — Alemanha, Peru, 1982
Direção: Werner Herzog
Roteiro: Werner Herzog
Elenco: Klaus Kinski, José Lewgoy, Miguel Ángel Fuentes, Claudia Cardinale, Milton Nascimento, Grande Otelo
Duração: 158 min.

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