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Crítica | Fletch, de Gregory Mcdonald

Um cretino adorável.

por Ritter Fan
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Provavelmente mais conhecido do público em geral na versão cinematográfica encarnada por Chevy Chase, o repórter investigativo Irwin Maurice Fletcher, normalmente chamado apenas de Fletch, foi criado pelo jornalista e romancista americano Gregory Mcdonald (1937-2008) para protagonizar o livro epônimo publicado originalmente em 1974, gerando uma série literária composta de 15 obras, já contando com as duas co-protagonizadas pelo filho do personagem e os quatro pelo Inspetor Francis Xavier Flynn, apresentado em Confesse, Fletch, o segundo romance. Leitura rápida e muito satisfatória em quase todos os volumes, o único elemento que exige aclimação por parte do leitor é o próprio Fletch, bem diferente da versão cômica que chegou aos cinemas por duas vezes nos anos 80.

Não que ele seja um personagem particularmente complexo, mas sim porque ele é, sem papas na língua, um cretino, algo particularmente acentuado neste primeiro livro, mas, depois, suavizado e até relativizado, mas sempre dentro de uma lógica de desenvolvimento dele em momentos diferentes de sua vida, antes e depois dos eventos abordados na obra inaugural. Fletch, conforme ele próprio se apresenta usando a sigla formada por seus dois primeiros nomes seguido de seu terceiro completo – I.M. Fletcher, o que, em português, seria o equivalente a “Eu Sou Fletcher” – já imediatamente anuncia seu egocentrismo e sua maneira pedante de ser, algo que é amplificado pela maneira como McDonald escreve seu personagem, com uma constante recusa de ele se explicar para quem quer seja. Cada pergunta feita a Fletch é respondida ou com outra pergunta ou com extremo sarcasmo e ironia, de onde deriva um humor debochado e esperto, além de um completo descaso com o próximo que exigirá dos leitores mais acostumados a um protagonista puramente “herói”, de moral ilibada e pronto para sempre fazer o bem, uma curva de ajuste que, adianto logo, vale muito a pena, pois os melhores personagens literários são, invariavelmente, aqueles que trafegam com facilidade a linha fronteiriça entre o bem e o mal em suas mais variadas manifestações, pois estes personagens, via de regra, aproximam-se muito mais da natureza humana do que aqueles que são tratados de maneira binária.

Claro que Mcdonald não escreve seu Fletch com a qualidade que Arthur Conan Doyle escreve seu Sherlock Holmes, mas há um evidente paralelo entre os personagens, já que Holmes é frio, distante, repleto de vícios e extremamente pedante, características replicadas e trazidas a momento presente, por assim dizer, no repórter investigativo. Fletch também é, como Holmes, brilhante, mas sem aqueles momentos de dedução que só o autor britânico sabia escrever, mas com uma estrutura de raciocínio lógico muito interessante, que prende imediatamente o leitor à história e ao personagem.

Falando em história, como é costumeiro nas obras do autor protagonizadas por Fletch, ela é dividida em duas linhas narrativas simultâneas e paralelas, com uma terceira que lida com o lado pessoal do personagem que fica sempre em segundo ou terceiro plano. Aqui, Fletch, enquanto investiga a distribuição de drogas em uma praia da Califórnia disfarçado de viciado, é recrutado pelo milionário Alan Stanwyk, que se parece fisicamente com ele, para matá-lo em troca de um pagamento generoso e um voo para o Rio de Janeiro de forma que ele possa se esconder por um tempo. A razão para isso é que Stanwyk tem câncer e não quer passar pela pior parte da doença, com o suicídio sendo carta fora do baralho em razão do seguro que beneficiaria sua esposa. Como é de se esperar, Fletch desconfia de algo muito errado e passa a também investigar o milionário, adicionando esse caso ao seu já em andamento sobre as drogas que em momento algum é esquecido na história, apesar de seu chefe o tempo todo cobrar resultados. A terceira ponta do livro, a que toca pessoalmente o protagonista, é sobre o pagamento de pensão à sua segunda esposa, algo que ele nunca fez, levando-a a colocar um advogado atrás dele para fazer a cobrança.

Pode parecer muita coisa para um livro tão curto, mas não é. Mcdonald cria uma estrutura infalível aqui que ele replicaria em todos os romances da série, tornando-se sua marca registrada: há muitos diálogos breves, o que por vezes até faz com que a pouca narrativa em terceira pessoa pelo ponto de vista de Fletch pareça estranha no meio do uso vasto da primeira pessoa do singular, mas que criam uma dinâmica agilíssima à história; toda a ação se passa ao longo de poucos dias, não mais do que uma semana; a história carrega elementos variados de crítica socioeconômica e política, aqui no primeiro livro sendo a vida dupla de milionários e a corrupção policial e, finalmente, todo o conjunto é apresentado em capítulos breves, econômicos, mas completos dentro da proposta do autor que resultam na resolução dos casos de maneira muito satisfatória (especialmente para Fletch) e lógica dentro do que é apresentado.

Fletch é, portanto, o típico cafajeste genial que odiamos adorar ou, talvez, que adoramos odiar, não sei. Um personagem rico, muito humano no sentido de estar bem mais próximo dos leitores do que os próprios leitores gostariam que estivesse, com humor refinado exalando inadvertidamente de sua postura cretina, sarcástica, irônica, enganadora e fria com todo mundo ao seu redor e, claro, altamente teimoso e inteligente. E Mcdonald, em seu primeiro livro da série, apresenta sua irresistível criatura com uma história imediatamente cativante e envolvente que prende o leitor da primeira à última página de uma obra que genuinamente entretém.

Fletch (Idem – EUA, 1974)
Autor: Gregory Mcdonald
Editora original: Bobbs-Merrill
Data original de publicação: 1974
Editora no Brasil: Editora Record
Data de publicação no Brasil: ?
Tradução: ?
Páginas: 229

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