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Crítica | Para Sama

por Ritter Fan
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Passado proeminentemente em um hospital improvisado durante o cerco de Aleppo pelas tropas do regime de Bashar Al-Assad, as comparações de Para Sama com The Cave, documentário que também concorre ao Oscar 2020 nessa categoria, é inevitável. Em essência, temos duas obras com a mesma mensagem e compostas de imagens obtidas no fronte por quem vive na região e em um mesmo tipo de local, diferenciando-se apenas pela estrutura narrativa e pela abordagem estilística.

Para Sama é montado como um diário da jornalista síria Waad Al-Kateab para sua filha Sama, nascida durante a guerra civil por que passa seu país, com uma pegada não completamente linear que nos leva do presente da fita – o ano de 2016 – para o início da tentativa da população, pegando carona na Primavera Árabe, de derrubar a ditadura da linhagem de Assad. Além disso, Waad e seu co-diretor Edward Watts, não economizam na inserção de filmagens extremamente gráficas, talvez a principal diferença em relação a The Cave, que tenta ser mais sutil. Apesar de nenhum documentário sobre essa guerra ser exatamente fácil de assistir, Para Sama é particularmente difícil pela forma gráfica em que as mortes são efetivamente encaradas, sem filtros e sem nenhuma tentativa de atenuar seus impactos.

As idas e vindas temporais – a cada vez que voltamos para 2016, o documentário avança um mês no cerco de Aleppo – são muito bem-vindas e muito bem trabalhadas como forma de se contextualizar a história sendo contada, até porque, como o título deixa claro, trata-se de uma forma de Waad e de seu marido, o médico Hamza, diretor do mencionado hospital improvisado, de “conversar” com a Sama do futuro e de justificar suas escolhas pessoais de não abandonar a cidade e de manter a menina sempre junto com eles. Se pessoalmente é possível que o espectador tenha dúvidas da prudência de se fazer o que o casal fez com Sama, expondo-a aos bombardeios aéreos diários ao local tanto com mísseis comuns quanto com bombas “sujas” enquanto havia alternativas a isso que eles propositalmente não exerceram, sob o ponto-de-vista puramente narrativo – o que exige uma certa frieza de análise, não tenham dúvida – é a presença constante da bebezinha e seu futuro incerto que dão o recheio de tensão e medo que diferencia esse documentário de outros sobre a mesma temática.

Há, também, a riqueza das imagens capturadas por Waad. Ela não tem o gabarito técnico para oferecer material que não seja a “filmagem tremida de câmera na mão”, mas isso não é empecilho algum para que seu vasto material – foram mais de 400 horas desde 2011 – não resulte em uma obra que entrega uma panorama ao mesmo tempo macro e micro da história dessa terrível e criminosa guerra civil que assola o país, com um desenvolvimento digno de filme de suspense (de terror, na verdade) que a filmagem em estilo de guerrilha só amplifica. E é refrescante ver a preocupação em voltar no tempo diversas vezes para enfocar no sentimento de revolta crescente da população jovem local iniciando um movimento cheio de esperanças, somente para ver tudo desabar na medida em que os anos passam. Triste, sem dúvida, mas essa rica contextualização é muito interessante, ainda que por algumas vezes o sentimentalismo que descamba para “ah, minha casinha” e “minhas plantinhas morreram” seja um pouco demais dentro do esquema geral do que já fica sobejamente claro.

Teria sido talvez mais interessante trabalhar ainda mais com as sequências brutais do passado, com elipses menores para a crescente destruição da cidade. Há um vazio temporal razoavelmente grande que fica sem preenchimento com imagens sem razão aparente que não seja escolha dos diretores, talvez mais interessados em focar o presente da fita. No entanto, esses possíveis enxertos, que certamente alongariam o documentário – que é razoavelmente curto e, portanto, poderia se dar ao luxo de ganhar extensões – teriam o condão de criar transições mais suaves entre a Aleppo do começo da revolta e a Aleppo de 2016, basicamente terra arrasada.

Mesmo sem isso, porém, Para Sama é um retrato poderoso da crueldade de uma guerra que faz vítimas indiscriminadamente e usando os mais sujos expedientes e de um povo que não se acovarda diante de um prognóstico sombrio sobre suas chances de sobrevivência. Não é somente uma lição para Sama e sim para todos nós, mesmo tão distante de um conflito dessas dimensões.

Para Sama (For Sama, Reino Unido/Síria – 2019)
Direção: Waad Al-Kateab, Edward Watts
Com: Waad Al-Kateab, Hamza Al-Kateab, Sama Al-Kateab
Duração: 100 min.

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