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Crítica | Ford vs Ferrari

por Ritter Fan
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Sem nem entrar nos detalhes do filme sob análise, há dois fatores que tornam essa produção absolutamente irresistível: a guerra da Ford para retirar a coroa da Ferrari no famoso e dificílimo circuito de Le Mans, uma das mais fascinantes batalhas corporativas da história, e a corajosa escolha de James Mangold em filmar as sequências de corrida sem ajuda de computação gráfica, ou seja, tudo o que vemos é tão real quanto possível. E, como é característico do diretor de obras como Cop LandGarota Interrompida e Logan (esqueçamos Wolverine: Imortal, por favor), o drama humano ganha uma saudável dose de destaque entre as trocas de marcha, ultrapassagens impossíveis e acidentes explosivos.

O elemento humano, aliás, é um primor nessa obra, com escalações mais do que perfeitas, especialmente as de Matt Damon como o ex-piloto e designer de automóveis Carroll Shelby, Christian Bale como o piloto com poderes quase extrassensoriais para “sentir” automóveis Ken Miles e Ray McKinnon como o engenheiro automobilístico Phil Remington, formando a trinca genial contratada por Henry Ford II (Tracy Letts) a peso de ouro a partir de ideia ousada de Lee Iacocca (Jon Bernthal) que, por sua vez, estabelece a eterna animosidade de Leo Beebe (Josh Lucas), vice-presidente da empresa. Como grande parte do foco narrativo fica em Miles, um homem que não se desvia um milímetro de seus valores morais, o personagem é o único que ganha uma construção maior e mais relevante, o que significa que sua vida familiar com a esposa Mollie (Caitriona Balfe) e seu filho Peter (Noah Jupe) é explorada de maneira muito eficiente ao longo de toda a narrativa, dando enorme estofo para ele e abrindo espaço para Bale realmente brilhar em mais um trabalho transformativo de cair o queixo, literalmente mastigando o cenário toda vez que aparece.

Para um filme de mais de 2h30′ sobre corridas, é impressionante notar como o roteiro escrito a seis mãos é econômico com as sequências que efetivamente colocam o espectador no meio da ação. As corridas, aqui, são economizadas para que elas não sejam banalizadas com repetições que não levariam a lugar algum, com Mangold muito inspirado na maneira como faz com que o espectador realmente não sinta falta delas. Para exemplificar, em uma sequência particularmente importante, em que o centro das atenções deveria ser justamente a corrida, o diretor troca a ação por um galpão repleto de carros, mas com apenas uma pessoa ouvindo o que está acontecendo pelo rádio e reagindo de acordo. Ele valentemente troca a tensão natural que uma sequência na pista teria por reações humanas que falam muito não só sobre o personagem, como também sobre toda a traição corporativa que permeia o filme e que é capitaneada por Beebe, um daqueles vilões sorridentes e ensebados que dá vontade de pular na tela com um taco de beisebol para acabar com a raça dele.

Em muitos aspectos, claro, o grande tema é o mítico sonho americano ou, melhor dizendo, a desconstrução dele. O momento que deixa isso evidente já no começo da fita é quando Henry Ford II paralisa a linha de produção de sua fábrica para falar sobre o grande valor de seu avô e, em um twist, usar isso para pressionar seus empregados a fazerem mais do que fazem unicamente porque a General Motors tornou seus Chevys Impalas nos carros mais vendidos nos EUA. Prepotência, ganância e exploração corporativa manchando e esmagando a lenda do sonho americano e estabelecendo de início a relação entre a empresa de Shelby e a Ford. Era esperado que o roteiro vilanizasse a Ford, mas o trabalho é bem mais sutil do que pintar o grande fabricante de carros como o demônio na Terra, com boas relativizações que vem primeiro de Lee Iacocca (a escalação de Bernthal foi cirúrgica para esse efeito) e depois do próprio Henry Ford II em duas sequências particularmente especiais: quando Lee relata a ele o resultado da reunião com Enzo Ferrari (Remo Girone) e quando Shelby leva Ford para uma “voltinha” no GT40.

Além disso, a tenacidade humana que efetivamente construiu a ideia do sonho americano também é festejada, mas claro sempre fora do ambiente corporativo. Shelby, Miles e Remington são os grandes porta-estandartes desse lado da obra e, mesmo com o primeiro e o último mais parecendo arquétipos de personagens do que personagens, eles mais do que perfeitamente encapsulam a ideia de que tudo é possível com engenhosidade e inteligência.

E as cerejas no bolo são as sequências de corrida propriamente ditas, com óbvio destaque para as 24 Horas de Le Mans. Nelas, a montagem de Andrew Buckland, Michael McCusker e Dirk Westervelt se destaca ao lado da fotografia de Phedon Papamichael, criando um conjunto harmônico que sempre mantém o foco em Ken Miles e o usa como fio condutor para cortes precisos que, sozinhos, contam uma história, algo particularmente desafiador considerando a duração das corridas e da ausência de artifícios narrativos óbvios como a indicação visual da passagem das horas, algo que me lembrou muito a energia que vemos nas sequências de corrida de Rush – No Limite da Emoção, outra excelente rivalidade automobilística, ainda que sem o elemento corporativo, levada para as telonas.

Ford vs Ferrari é uma fidelíssima ficcionalização da famosa guerra automobilística transcontinental dos anos 60 que sabe equilibrar a tensão das corridas com o eterno drama humano da perseguição de seus objetivos, custe o que custar. Impossível sair indiferente de uma história tão bem contada como essa.

Ford vs Ferrari (Ford v Ferrari, EUA – 2019)
Direção: James Mangold
Roteiro: Jez Butterworth, John-Henry Butterworth, Jason Keller
Elenco: Matt Damon, Christian Bale, Jon Bernthal, Caitriona Balfe, Tracy Letts, Josh Lucas, Noah Jupe, Remo Girone, Ray McKinnon, JJ Feild, Gian Franco Tordi, Jack McMullen, Benjamin Rigby, Joe Williamson, Alex Gurney, Corrado Invernizzi, Wallace Langham
Duração: 152 min.

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