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Crítica | Frankenstein (2025) – Com Spoilers

Uma excelente revisitação ao clássico.

por Kevin Rick
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Guillermo del Toro sempre filmou sobre monstros à procura de alma e homens à beira do abismo. Desde seus primeiros longas, o cineasta tratou a monstruosidade como espelho moral, e não como deformidade física. Frankenstein (2025) é, nesse sentido, a culminação de tudo o que o diretor mexicano construiu ao longo de décadas, no encontro definitivo entre a poesia do grotesco e o horror da humanidade. O romance de Mary Shelley já havia sido revisitado inúmeras vezes, mas talvez não com tamanha clareza emocional ou com tanta devoção à tragédia e à culpa. Como meu colega Ritter Fan bem explicou na sua crítica sem spoilers, este não é o filme de horror que o público espera, é um drama gótico sobre criação, responsabilidade e sofrimento eterno, uma elegia sobre o que significa gerar vida e depois rejeitá-la. 

A história começa na vastidão do Ártico, em 1857, quando o navio dinamarquês do Capitão Anderson (Lars Mikkelsen) se vê preso no gelo. Em meio ao frio e ao desespero, eles encontram um homem moribundo, ninguém menos do que Victor Frankenstein, interpretado por Oscar Isaac em uma performance tomada pela febre da culpa e pela loucura. Pouco depois, a embarcação é atacada por uma criatura de força sobre-humana e pele cicatrizada, interpretada por Jacob Elordi com uma intensidade hipnótica. É nesse embate entre o criador à beira da morte e o ser que não pode morrer que Del Toro estrutura seu filme. A partir do reencontro, a narrativa se divide em dois grandes capítulos, como duas confissões complementares: o relato de Victor, que explica o nascimento da criatura, e o da criatura, que narra a descoberta da própria consciência. 

O primeiro bloco, centrado em Victor, é um mergulho na obsessão. Del Toro filma sua juventude com uma certa frieza mórbida. O pai aristocrata, distante e abusivo, e a morte da mãe durante o parto do irmão mais novo, William, moldam o trauma inaugural do cientista: a incapacidade de aceitar a finitude. Victor é um homem moldado pela perda e pela arrogância, acreditando que a ciência é o único meio de vencer Deus, e que o controle sobre a morte é a forma suprema de amor. Essa confusão moral de querer salvar e dominar ao mesmo tempo é o que o conduz à tragédia. Isaac compõe um Victor de gestos contidos, mas olhar febril, como se estivesse contaminado por algo.

Del Toro filma o processo de criação com um detalhismo quase fetichista. O laboratório de Frankenstein é uma catedral da ciência profana em sua torre vertical, feita de metal gótico, iluminada por descargas elétricas e pelas sombras de corpos, tudo contribuindo para a atmosfera de liturgia blasfema. O experimento, por sua vez, é menos espetáculo que agonia: Victor recolhe membros de soldados mortos na Crimeia, criminosos enforcados e homens desfigurados. O corpo criado é um mosaico de horrores, numa sequência de experimentos grotescos em um bloco que é o mais próximo do horror no sentido mais pop da palavra.

A relação entre Victor e sua criação é o eixo emocional do filme. Nos primeiros dias, o cientista tenta ensinar o nome à criatura, como um pai ensinando um bebê a falar. Mas esse vínculo logo se corrompe pela frustração. Victor, incapaz de suportar a imperfeição do que criou, acorrenta o ser no subsolo e o chama de “erro”. Em uma das cenas mais brutais, ele observa o monstro repetindo o próprio nome — “Victor… Victor…” — como uma oração desesperada, e decide incendiá-lo junto com o laboratório. Essa sequência, filmada com câmera em movimento circular, entre o fogo e os gritos, é um dos momentos mais intensos da filmografia de Del Toro. Há ecos de O Labirinto do Fauno e A Forma da Água: o fogo e a água voltam a simbolizar nascimento e purificação. O incêndio não destrói apenas o laboratório, mas também a última centelha de humanidade em Victor.

Quando o foco se desloca para a criatura, o filme muda de tom e textura. Saímos da opulência gótica para um lirismo trágico, próximo da natureza. Del Toro filma a errância do monstro com serenidade em planos longos, ventos, neve e silêncio. O monstro encontra abrigo numa fazenda e passa a observar um velho cego e sua neta. É um trecho que ecoa diretamente o livro de Shelley, mas ganha aqui um lirismo agridoce. Elordi tem uma tarefa hercúlea, dando alma a um corpo decrépito, coberto de cicatrizes, transformando a criatura num ser comovente, repleto de curiosidade infantil e tristeza ancestral. As cenas em que ele aprende a falar e a ler são de uma doçura que rompe o horror, em algumas das melhores passagens da obra.

Del Toro entende que a história de Frankenstein não é sobre a morte, mas sobre o abandono. A criatura não busca vingança; busca pertencimento. Quando descobre, nas anotações de Victor, a origem de seu corpo, o horror não é físico, mas existencial. Ele percebe que foi criado não para ser amado, mas para provar uma tese. O choque entre a razão do criador e o sentimento da criatura é o verdadeiro centro filosófico do filme.

A performance de Jacob Elordi é monumental. Com quase dois metros de altura e um olhar que mistura inocência e fúria, o ator faz da criatura um poema vivo. Sua movimentação é trôpega, mas carregada de peso emocional. Há momentos em que o simples ato de tocar a neve parece um gesto de humanidade. Elordi encontra o tom exato entre a animalidade e a razão. O ápice de sua atuação está na cena do reencontro com Victor, na noite do casamento de William e Elizabeth. É uma sequência que Del Toro filma como um balé trágico, com diálogos mordazes e uma pegada meio teatral. O caos visual é controlado com maestria. A cada corte, sentimos a inevitabilidade da tragédia. A morte de Elizabeth (Mia Goth) e William (Felix Kammerer) sela o destino de todos. Del Toro não romantiza a violência, filmando-a como consequência moral. O horror nasce da recusa ao amor.

Se tenho alguma reclamação, é a forma como Del Toro subjuga e mal utiliza os coadjuvantes. O relacionamento amoroso entre a criatura e Elizabeth é bonito, mas também um pouco superficial pela falta de presença e desenvolvimento da personagem feminina, além de dar um tom meio melodramático para algumas cenas e momentos da história (existe um certo exagero dramático inevitável nesse tipo de história, porém). William é outra figura apenas funcional na trama, quando poderia ser mais incisivo, enquanto o Henrich Harlander de Christoph Waltz é também relativamente desperdiçado, dando apenas o estopim monetário para o experimento de Victor. De qualquer forma, são problemas pontuais e que não tiram o mérito da ótima narrativa em torno das duas figuras centrais.

No ato final, o filme retorna ao ponto de partida. Victor, mutilado e febril, persegue a criatura até o Ártico. A jornada é quase metafísica. O homem que queria dominar a morte agora rasteja sobre o gelo, morrendo de frio, enquanto o ser que não pode morrer o observa com raiva, mas certa piedade. A inversão é completa: o criador se torna o frágil; a criação, o compassivo. Quando o navio de Anderson resgata Victor e a criatura reaparece para confrontá-lo, a história atinge um de seus momentos mais comoventes. Del Toro não filma a morte de Victor como punição, mas como absolvição. Ao pedir perdão à criatura, ele reconhece a humanidade que sempre lhe negou. E o gesto final do monstro empurrando o navio para fora do gelo e encarando o sol nascente é uma das imagens mais belas da carreira de Del Toro.

Do ponto de vista formal, Frankenstein é um triunfo visual e técnico. A decisão de evitar o CGI e apostar em efeitos práticos dá ao filme um peso natural e físico raro no cinema contemporâneo. As próteses e a maquiagem são de um detalhismo impressionante, evocando a arte de Bernie Wrightson e as ilustrações de Gustave Doré. Cada cicatriz conta uma história. Os cenários são construídos em escala real, com torres que parecem respirar, laboratórios que se movem com a câmera, e uma textura tátil que lembra Crimson Peak. Del Toro filma com lentes largas, explorando a profundidade de campo como quem observa um teatro de tragédias. A trilha sonora de Alexandre Desplat complementa esse universo com uma mistura de coro sacro e instrumentos de corda arranhados, criando um som que é ao mesmo tempo elegíaco e ameaçador. Tudo nesse filme respira a fusão entre o humano e o sobrenatural.

Mas o que torna Frankenstein verdadeiramente poderoso é seu subtexto. Del Toro entende o mito como uma tragédia sobre as consequências do Homem brincar de Deus. Inclusive, penso que há ainda um componente religioso que atravessa toda a narrativa. Frankenstein é, em última análise, um filme sobre a relação entre o homem e Deus. Victor é o anjo caído que desafia o Criador; a criatura é o Adão rejeitado. Del Toro tece referências a John Milton, a Prometeu e à iconografia cristã com naturalidade: os planos em contraluz, as posturas cruciformes, o uso do fogo e da luz como metáforas de conhecimento e destruição. Quando o monstro questiona a razão de ter sido feito, mas não amado, o eco é meio bíblico, o lamento de uma criação abandonada pelo pai. A resposta de Victor, um sussurro de arrependimento antes da morte, é o reconhecimento de que a verdadeira monstruosidade nunca esteve na carne, mas na incapacidade de amar o que é imperfeito.

No desfecho, quando o sol surge sobre o Ártico e o monstro ergue o rosto para o calor que não o mata, há uma sensação de encerramento. Não de paz, mas de compreensão. O filme termina onde começou, mas o olhar da criatura agora é outro: ele entende que o amor pode existir mesmo na ausência do criador. É uma epifania amarga, mas necessária. A câmera se afasta lentamente, e o corpo da criatura é tomado pela luz. O monstro desaparece não como vilão, mas como testemunha da redenção de seu pai. Del Toro encerra o filme com um silêncio quase sagrado, como se nos pedisse reverência diante daquilo que acabamos de ver.

Frankenstein é o filme que Guillermo del Toro nasceu para fazer. Não apenas porque sintetiza suas obsessões estéticas, no gótico, no barroco e no orgânico, mas porque representa o ápice emocional e filosófico de sua carreira. É uma obra de horror e de tragédia, de rancor e de compaixão, de beleza e de dor. Um filme sobre o ato de criar e o fardo de abandonar o que se cria. No fim, Del Toro faz o que Shelley fez há mais de dois séculos: oferece ao mundo uma história sobre a solidão de quem ousa brincar de Deus, mas acrescentando um gesto de perdão. Seu monstro não morre, sobrevivendo porque o amor, mesmo tardio, é uma forma de imortalidade. Entre fogo e gelo, vida e morte, criador e criatura, Frankenstein emerge como, talvez, o filme mais humano de Guillermo del Toro, em um épico gótico sobre o poder destrutivo e redentor de amar aquilo que se teme.

Frankenstein (Idem – EUA, 2025)
Direção: Guillermo del Toro
Roteiro: Guillermo del Toro (baseado em obra de Mary Shelley)
Elenco: Oscar Isaac, Christian Convery, Jacob Elordi, Mia Goth, Felix Kammerer, Lars Mikkelsen, Christoph Waltz, Charles Dance, David Bradley, Lauren Collins, Sofia Galasso, Ralph Ineson, Burn Gorman
Duração: 150 min.

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