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Crítica | Frankenstein: Anatomia de Monstro, de Kathryn Harkup

Uma abordagem minuciosa da concepção da obra-prima de Mary Shelley.

por Leonardo Campos
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Além de uma versão de luxo para o principal livro de Mary Shelley, outra leitura do mesmo universo deve ser encarada como um complemento obrigatório para os interessados me literatura e cultura. Com o habitual trabalho de edição da Darkside, Frankenstein: Anatomia de Monstro é uma publicação espetacular. Não apenas pelo excelente texto e pesquisa da autora, mas pela ótima tradução de Giovanna Louise Libralon e a coordenação de diagramação de Sérgio Alves. Em capa dura, com suas páginas opulentes adornadas por imagens constantes, o livro é um daqueles para aprender com a leitura, mas também decorar ambientes, de tão especial que é a sua estrutura física. Ao longo de suas 336 páginas, divididas em três partes, intituladas Concepção, Criação e Nascimento, o material escrito originalmente por Kathryn Karkup, em 2018, traz treze capítulos que dialogam entre si no mesmo nível de fluência textual. Curiosidades da época, associada aos acontecimentos do romance, numa simbiose reflexiva que é ampla, mas não nos cansa e, ao final, ainda deixa aquela sensação de “quero mais, poderia ter ainda mais coisas a abordar”, de tão empolgante que é a análise do clássico gótico de Mary Shelley.

Frankenstein é uma narrativa muito rica em questões científicas e éticas que ressoam até os dias de hoje, publicação que traz uma curiosa interseção entre ciência e moralidade, bem como questões sociais presentes no romance, dentre elas, a responsabilidade do criador, pois a história de Victor Frankenstein levanta questões sobre a relação dos cientistas com as suas criações. O desejo de criar vida não isenta o criador de suas obrigações éticas e morais para com sua criação. O uso de métodos não convencionais e potencialmente perigosos para atingir objetivos científicos é um tema central. O romance questiona se a busca pelo conhecimento justifica as consequências, especialmente se essas consequências incluem a dor e o sofrimento. Shelley explora a relação entre a natureza humana e a influência do ambiente. O monstro, que começa inocente, torna-se imoral devido ao tratamento cruel que recebe, questionando se o comportamento humano é inerente ou moldado por experiências.

Tanto tempo depois de ter ganhado a sua primeira edição, é fascinante observar como Frankenstein provoca reflexões sobre o que constitui a vida. Victor Frankenstein, em sua busca por criar vida, desafia os limites do que é considerado natural, abrindo um debate sobre a definição de vida e as implicações de sua manipulação, adentrando nas questões acerca da alienação e do isolamento, pois o “monstro” experimenta mazelas devido ao seu aspecto físico e ao medo que inspira. Este isolamento reflete questões sobre como o preconceito e a sociedade “desumanizam” o que é diferente, abordando a importância da aceitação e da empatia. A busca de Victor Frankenstein por conhecimento e poder é um reflexo do potencial destrutivo da ciência quando desconectada da responsabilidade social. O foco no individualismo em detrimento do bem comum é um alerta sobre a ética na ciência. Tais pontos, distribuídos ao longo dos capítulos de Anatomia de Monstro, nos permite sobre a riqueza da composição literária de Shelley, texto que vai muito além do entretenimento, estabelecendo-se como uma forte crítica social.

Interessante observar que a ausência de personagens femininos fortes em papéis de poder e influência sugere um ambiente dominado por homens, levantando questões sobre o papel da mulher na ciência e na sociedade do século XIX. Aqui, um homem representa essa dominação: e ele é Victor Frankenstein, figura ficcional que personifica a ambição desmedida e os perigos do “sabe-tudo”. A sua crença de que poderia superar os limites da natureza se torna uma lição sobre os riscos de tentar se elevar acima das forças naturais. Nesse processo, o livro nos permite refletir também sobre a formação da identidade do monstro, profundamente influenciada pela rejeição da sociedade. Isso levanta questões sobre como a aceitação social e os relacionamentos afetivos moldam a identidade humana e a moralidade. Ademais, Frankenstein antecipa debates sobre as consequências da ciência e da tecnologia, levantando preocupações sobre como inovações podem ser mal utilizadas.

Desde os primeiros passos para melhor compreender o romance de Mary Shelley, o galvanismo foi um dos tópicos mais me despertaram curiosidade, devidamente analisado ao longo dessa análise em pormenores de Kathryn Karkup. O galvanismo, que se refere à geração de corrente elétrica a partir de reações químicas, despertou um grande fascínio entre os cientistas e o público em geral. O trabalho de Luigi Galvani, que observou o movimento de pernas de rãs quando expostas a um impulso elétrico, deu início a uma nova compreensão sobre a eletricidade e os processos biológicos, levando a debates intensos sobre a vida, a morte e o que significa ser humano. Essas descobertas científicas criaram um ambiente propício para a discussão sobre a natureza da vida e da criação, influenciando diretamente a literatura. Mary Shelley, em particular, foi profundamente impactada por essas ideias emergentes. Durante o verão de 1816, enquanto passava tempo na Villa Diodati, com seu marido Percy B. Shelley e outros intelectuais, Mary foi exposta às teorias sobre o galvanismo e a eletricidade que estavam em voga. Os debates sobre a ressurreição e a vitalidade através de estímulos elétricos inflamaram sua imaginação e assim, a influência do galvanismo se manifesta de maneira marcante em sua obra-prima, Frankenstein.

O protagonista, Victor Frankenstein, é um cientista que busca ultrapassar os limites da morte ao criar vida a partir de partes de corpos. A ideia de que a eletricidade poderia, de alguma forma, trazer à mesa a questão da vida e da morte é uma reflexão direta das investigações científicas da época. Na narrativa, Victor usa uma forma de galvanismo para dar vida a sua criação, o que simboliza tanto uma conquista gloriosa da ciência quanto um dilema ético profundo. Além disso, a obra de Shelley suscita questionamentos sobre a responsabilidade do criador em relação à sua criação e o impacto dessa criação na sociedade. Frankenstein não é apenas uma história de horror, mas também uma crítica à ambição desmedida da humanidade e ao desejo de controlar a vida. O galvanismo, como um poderoso símbolo do avanço da ciência, serve como um pano de fundo que amplifica essas questões. Em linhas gerais, caro leitor, curioso caso da pesquisa em torno do galvanismo catalisou uma revolução nas percepções sobre a vida e a morte no início do século XIX, servindo como inspiração para Mary Shelley em sua criação, nos desafiando a considerar as implicações morais da ciência e da tecnologia, um dos pontos críticos do enredo.

Publicado em 1818, Frankenstein é uma narrativa fundamental na literatura: combina horror e ficção científica, influenciando a cultura pop e o entendimento da ciência. Kathryn Harkup, em seu livro Anatomia de Monstro, analisa os aspectos científicos que sustentam a narrativa de Shelley, ressaltando que a história não se baseia em elementos sobrenaturais, mas em princípios científicos e filosóficos da época. Esse enfoque revela uma curiosidade sobre a relação entre a ciência e a ficção, abordando a construção de uma criatura a partir de partes do corpo humano, refletindo a perspectiva do corpo como uma máquina orgânica. A partir do século XVI, a prática de dissecação de cadáveres por anatomistas levou ao surgimento do corpo humano como uma máquina complexa, embasando as ideias que permeiam a obra de Shelley. A ilustração do coração por William Harvey, visto como uma bomba, é um tópico que exemplifica essa nova visão. No final do século XVIII, o crescente interesse pelos corpos humanos entre estudantes de medicina, que muitas vezes recorriam à prática ilegal de roubo de cadáveres devido à escassez de materiais legais, influenciou a criação de Victor Frankenstein e sua criatura.

Esse contexto social e científico é fundamental para compreender a crítica de Shelley ao avanço da ciência e à ética em relação à vida e à morte. O romance reflete a intersecção entre o conhecimento médico e os avanços científicos do século XVIII e XIX, ancorando-se em figuras históricas como o cirurgião John Hunter, que realizou experimentos inovadores, incluindo dissecações e tentativas de ressuscitação. Embora Hunter tenha morrido antes do nascimento de Shelley, sua influência podia ser sentida através de seu pai, William Godwin, e de seus alunos, concomitante ao que a narrativa aborda sobre a crescente curiosidade e discussões em torno de técnicas cirúrgicas e transplantes, que embora tenham se concretizado plenamente após a publicação do livro, já faziam parte de um amplo repertório de experimentos e teorias. Mary Shelley posiciona Frankenstein em um contexto onde as disciplinas científicas e filosóficas estavam entrelaçadas, com fronteiras menos definidas do que as que existem hoje. Nesse cenário efervescente de descobertas, a obra se destaca como um dos primeiros exemplos de literatura a integrar de forma significativa experimentos médicos e avances científicos na ficção. Como sublinha Kathryn Harkup, a história de Shelley não apenas encapsula as conquistas científicas da sua época, mas também invoca o medo de que tais descobertas poderiam tornar possíveis eventos que outrora eram considerados meramente ficcionais, como a ressuscitação de uma criatura composta por partes de cadáveres.

Um livro para ser dissecado por estudiosos ou curiosos. Diletantismo garantido e aprendizagem para além do entretenimento.

Frankenstein: Anatomia de Monstro (Making The Monster: The Science Behind Mary Shelley’s Frankenstein/EUA, 2023)
Autoria: Kathryn Harkups
Autoria: Giovanna Louise Libralon
Editora: Darskide Books
Páginas: 336

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