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Crítica | Free Guy: Assumindo o Controle

por Laisa Lima
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O cinema e a tecnologia sempre andaram lado a lado. Visto isso, um dos maiores marcos da modernidade e desta geração revelam um mundo paralelo ao mundano: o dos games. Neste universo, a dificuldade de se passar de fase está de acordo com a complexidade de se retratar algo para além do que a capacidade cognitiva pode atingir. Armas em Jogo (2019) e Scott Pilgrim contra o Mundo (2010) tentaram, assim como outras obras, reproduzir a atmosfera de um jogo, sendo o último exemplo, Scott Pilgrim, bem sucedido em sua empreitada, e o primeiro, uma vítima da pretensão do esforço desmedido para gerar uma versão fiel ao vício dos gamers mais turrões. Free Guy (2021), de Shawn Levy, no entanto, embora seja mais uma investida nesta ilimitada fonte, apresenta uma conexão palpável entre o Homem e sua criação fictícia eletrônica, elevando seus componentes a um nível quase, de fato, humano. Mas e se essa condição fosse realmente uma possibilidade?   

Guy (Ryan Reynolds) é um NPC (non-player character), ou seja, um personagem não jogável. Considerando tal status, o caixa bancário experiência uma vida monótona; sua rotina é sempre a mesma e tudo ao seu redor é idêntico ao que foi no dia anterior e ao que será no dia seguinte, o fazendo agir no automático. Contudo, ao encontrar um sentido para sua existência – conquistar Molotovgirl (Jodie Comer), a garota de seus sonhos – Guy percebe que ele era apenas um pano de fundo, um “boneco” descartável desenvolvido para servir às ações dos jogadores reais. E enquanto descobre que uma denominação não acorrenta quem você pode ser, a controladora por trás de Molotov e também criadora do jogo, Millie Rusk, se preocupa em como originar um novo game, já que a essência de Free City, onde está Guy, foi roubada por uma companhia cujo Keys (Joe Keery), o outro inventor, aceitou trabalhar – motivo do afastamento dos dois. Flutuando sob ambas as narrativas, o longa-metragem não se prende a nenhuma realidade, mesmo que as mesmas estejam interligadas controversamente.

Sem óculos, Guy se portava, de forma literal, como um personagem. Seus gestos eram mecânicos, assim como suas falas, e o surrealismo presente em suas apáticas atitudes diante de explosões, assaltos e tiroteios que aconteciam à sua volta, ratificavam a ideia de que aquilo não era uma normalidade terrestre. Porém, quando se encontra com os óculos que o fazem enxergar a aura do game e seus desafios, o falso cotidiano em que o protagonista estava inserido é revertido em uma ilusão luminosa  interativa, absurda, e até libertadora. A jornada de autoconhecimento de Guy evolui ao passo dos obstáculos inerentes a um jogo propriamente dito, trazendo alusões aos famosos Fortnite, Portal Gun e GTA – com a diferença da característica violência ser mais comedida -, dentre outros games de alto hype. Mesmo que busque inspiração em tais veículos, é fácil discernir que aqueles acontecimentos e aquelas pirotecnias visuais são de uma dimensão alternativa, não sendo necessário ser expositivo e didático, já que o manual de entendimento do filme é intuitivo. Bem construído, o local do jogo faz-se uma idealização para Guy, dado sua bolha imersiva que o transforma em alheio a danos que possam afetar sua rotina, e para os jogadores de Free City, que, como é do objetivo de muitos games, simboliza um escape do real para o inventado. 

Este “real”, todavia, é o avesso da cidade virtual do jogo: o embate pelos direitos de todo engenho por trás do jogo perpassa a diversão que o mesmo deveria causar, e toda ‘incomplexibilidade‘ na vida de Guy inicialmente, não se compara a rudez dos indivíduos não-computados, principalmente quando envolve Antoine (Taika Waititi), sua lucrativa empresa e sua vilania. Por mais que sua edificação seja inconsistente  e seus maneirismos beirando o forçação, é compreensível que o antagonismo tivesse que vir de algo que se não se pudesse montar, como é feito no popular The Sims e na maioria dos jogos, e agregasse um perigo realístico em sua intuito, demonstrando um dos piores pecados da humanidade: a ganância. Ainda que a motivação de Guy continuasse pura – galgar os níveis até alcançar um que estivesse apto a lhe dar acesso a sua mulher amada -, o mundo de fora de Free City não se contaminava com tais boas intenções. A perversidade estava ali para provar que a leveza de superar barreiras não era tão divertida quanto expunha o jogo.

Grande parte desta orquestrada incoerência entre a natureza dos dois cenários se sustenta nos intérpretes de seus personagens. O Guy de Ryan Reynolds vive um clássico arco de mantimento de virtude por meio das nuances de comportamento de sua figura e da continuidade de sua alma inocente, sempre com o mesmo ímpeto de ser seu próprio controlador e de conquistar Molotov, a multifacetada protagonista de Jodie Comer. Com Reynolds responsável pela compra do público de sua narrativa e de seu personagem fidedignamente carismático, e Comer como tradutora da coexistência dos games e do antro mortal, a experiência que Free Guy fornece é de um entretenimento levado por seus protagonistas – e coadjuvantes, no caso de Buddy (Lil Rel Howery), melhor amigo de Guy, participante de um entrosamento genuíno com Reynolds e dono de boas piadas – e de um entretenimento imaginativamente diferenciado. Com participações de streamers conhecidos, como Ninja, e de personalidades bombadas, como Chris Evans e Channing Tatum, a película se enriquece de materiais prontos, tais quais estas celebridades, apenas as realocando em posições certeiras. 

A comicidade dada pelos toques de Shawn Levy, diretor de Uma Noite no Museu (2006-2014) e Pantera Cor-de-Rosa (2006), igualmente como sua usual inventividade, faz a transposição de dois universos totalmente desconexos para fazê-los complementares. O uso de câmeras em modo zenital, rápida como nos jogos, e de gráficos contadores de pontos ou coisas do tipo, reluzentes na tela, contrastando com o ambiente cinza do principal palco da versão real do longa-metragem, a área de trabalho da companhia de Antoine, gera uma estética precisa para a distinção não só da aparência, mas também do clima que definem as duas faces da obra. Entretanto, apesar de seus gradativos empecilhos guiarem a história para um clímax esperado desde o início, a sua ausência de clareza e seu amontoado de eventos que se desdobram um em cima do outro, são capazes de perder um pouco um espectador com elevadas expectativas de uma única última reviravolta.

Free Guy carrega consigo uma originalidade divertida e bem-vinda. Independente dos problemas em seu vilão e da enrolação concentrada essencialmente no terceiro ato, a produção engatilha questões não são tão manejadas em um blockbuster de Hollywood qualquer, como a aversão a monotonicidade da vida e os pensamentos acerca do que é subsistir mais em função de uma máquina computadorizada. De maneira sutil e oras imperceptível, o longa-metragem conduz, através do divertimento de um mecanismo usado para o lazer, vulgo os games, à consideração destas e de muitas perguntas pertinentes. E, ao contrário de filmes similares (pelo menos alguns deles), a alma de videogame não é perdida pela sobreposição dos dilemas humanos, e vice-versa. Sendo assim, prossegue sendo um deleite apreciar uma obra despretensiosa, mas não tão superficial quanto julgada à primeira vista. Carismático desde seus personagens até seu enredo, o filme é uma pedida para jogadores, não-jogadores ou simplesmente apreciadores de um bom passatempo. 

Free Guy: Assumindo o Controle (Free Guy – EUA, Canadá, Japão, 2021)
Direção: Shawn Levy
Roteiro: Matt Lieberman, Zak Penn
Elenco: Ryan Reynolds, Jodie Comer, Taika Waititi, Joe Keery, Lil Rel Howery, Utkarsh Ambudkar, Camille Kostek, Aaron W Reed, Kimberly Howe, Matty Cardarople
Duração: 115 min.

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