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Crítica | Fuga de Los Angeles

por Michel Gutwilen
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Existe um mal que assola o debate sobre arte há mais de um século. Trata-se do realismo como o grande Monte Olimpo a ser atingido por todas as formas artísticas. Basta ver o que se fala sobre video games hoje em dia: “quanto melhor o gráfico, melhor o jogo”. Pelo visto, nada foi aprendido com a discussão que já envolveu diversos outros mediums, como o realismo e o uso de perspectiva na pintura e, claro, no cinema. Isso finalmente nos leva ao objeto deste texto, Fuga de Los Angeles, a continuação de Fuga de Nova York. O motivo desta pequena volta reside no fato de que a grande peça-chave do filme de John Carpenter está no uso dos seus efeitos especiais. Na sua época de lançamento, em 1996, muitos críticos usaram o perigosíssimo argumento de que o CGI tosco e irreal era um problema. Portanto, este texto é também uma tentativa de reparação histórica a um grande equívoco cometido no julgamento desta obra de arte.

Assim como no primeiro filme, o mercenário de tapa olho, Snake Plissken (Kurt Russell), é coagido pelo governo dos Estados Unidos a ir em uma missão suicida. O cenário novamente é uma cidade separada do resto do país que se tornou uma grande prisão para bandidos e degenerados. Antes Nova York, agora Los Angeles, que virou uma ilha após um grande terremoto — cabe dizer que a narrativa distópica se passa em 2013. Nesta aventura, a missão de Snake é capturar uma tecnologia que, paradoxalmente, pode desligar toda a tecnologia do mundo e foi parar nas mãos de um revolucionário latino Cuervo Jones, uma espécie de Che Guevara (visualmente falando) fictício.

Se Fuga de Los Angeles é uma continuação direta de Fuga de Nova York, curiosamente é com outro filme de Carpenter que ele mais dialoga: À Beira da Loucura, lançado dois anos antes. Em ambos, o Cinema por si só está presente em camadas meta-referenciais de ironias e ressignificações. Afinal, no longa de 1994, brinca-se com o potencial subversivo e de alienação de massas provocado pela arte cinematográfica, já que naquela história pessoas ficam loucas após irem assistir a um filme. Já aqui, é impossível ignorar da análise crítica a localização geográfica na qual a aventura se passa: Los Angeles, a capital de Hollywood

A primeira ironia carpenteriana já está no fato de que aquele lugar não mais é ocupado por grandes estrelas, mas sim uma grande prisão de degenerados. De mesmo modo, a etnografia  desta população de presidiários se mostra reveladora. Os grupos que vemos ao longo da cidade devastada são majoritariamente asiáticos, negros e latinos — inclusive, a personagem de Pam Grier é uma transsexual. Isso não só funciona como uma sátira que evidencia quem é considerado bandido aos olhos de um governo futurista estadunidense, como também, nesta metalinguagem, são agora as minorias excluídas ao longo de décadas do cinema que se reapropriaram do local que foi responsável por perpetuar diversos preconceitos contra elas através de blackfaces, whitewashing e outros métodos.

Em segundo lugar, e de mais essencial, está o aproveitamento de Los Angeles praticamente como um personagem vivo. Ora, que ironia maior do que representar a “cidade dos sonhos” — tanto a que cria sonhos através do cinema como a que é o sonho de moradia para todo pseudo ator — através dos efeitos especiais mais baratos possíveis? Que modo mais eficiente de escancarar sua farsa através do maior nível de artificialismo possível? Não à toa, Carpenter recorre a alguns planos gerais nos quais Snake anda com a cidade ao seu fundo e a impressão proposital que se passa é de que ele está pisando em uma tela verde. Logo, uma vez entendido isso, a discussão sobre o “CGI tosco” sequer deveria ter existido, uma vez que sua aplicação sempre depende da proposta do filme e não de uma associação simplória a priori entre irrealismo (ruim) vs. realismo (bom). Neste sentido, há diversos pontos em Fuga de Los Angeles que confirmam o fato dele ser uma narrativa sobre a falsidade das aparências: quando Snake entra em uma simulação virtual do roubo de Utopia; o uso de hologramas em momentos-chaves da história; e, claro, o fato do confronto final ser justamente na Disneylândia, a expressão máxima do american dream.

Aliás, para um filme que relembra dos grupos esquecidos por Hollywood, nada mais justo do que Fuga de Los Angeles também ser um resgate ao próprio gênero do western. Seja pelo próprio Snake fazendo a figura do cowboy silencioso com uma missão a cumprir ou pela cidade apocalíptica que é este grande deserto do futuro, diversas escolhas narrativas emulam clichês do faroeste. O bar que mais parece um saloon; o confronto de quem saca mais rápido; a perseguição de moto que emula os cavalos; a trilha sonora carpenteriana com sons de gaita. Analogamente, como bem aponta o crítico João Bénard Costa para a Revista Foco, o mesmo poderia ser dito que toda a sequência dos cirurgiões, que faz referência a outro tipo de gênero “abandonado”: o terror. Além disso, toda essa parte também se encaixa no humor ácido de Carpenter contra a indústria hollywoodiana, visto que ele associa a própria busca pelo rejuvenescimento dos astros por meio de plásticas a um cenário assustador e bizarro.

Por fim, o que todas essas referências meta-referenciais à Hollywood fazem de Fuga de Los Angeles? À maneira do diretor, um mestre do terror, esta é a forma mais bonita de homenagear o cinema através da ironia, ao mesmo tempo que também cutuca diversos problemas da indústria de filmes norte-americana. Para Carpenter, trata-se de tornar tudo em um ato subversivo, como a apropriação consciente dos estereótipos raciais e do CGI irrealista. Para fechar sua grande ironia com chave de ouro, nada melhor do que Snake fumando um cigarro chamado Espírito Americano após apagar toda a luz do mundo. Vence o homem com o seu individualismo e morre o falso progresso tecnológico disputado pelos tiranos totalitários. Talvez aí resida um dos maiores atos políticos de Carpenter: um ataque à Hollywood fazendo um filme holywoodiano. Vence o autorismo individualista contra o poder dos estúdios.

Fuga de Los Angeles (Escape from L.A.) – EUA, 1996
Direção: John Carpenter
Roteiro: John Carpenter, Kurt Russell, Debra Hill
Elenco: Kurt Russell, Stacy Keach, Steve Buscemi, A. J. Langer, Bruce Campbell, Pam Grier, Peter Fonda, Georges Corraface, Robert Carradine, Michelle Forbes, Valeria Golino
Duração: 97 mins.

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