É curioso pensar que, entre tantas séries de animação que marcaram gerações, poucas conseguiram a façanha de construir uma narrativa que começa como um conto juvenil sobre dois garotos que brincaram com um poder maior do que eles e termina como um épico de guerra, filosofia e política capaz de dialogar com mitos fundadores da humanidade. Fullmetal Alchemist: Brotherhood não é apenas uma adaptação fiel do mangá de Hiromu Arakawa, é uma das raras experiências no audiovisual que dão a sensação de círculo completo, onde cada gesto inicial reverbera no final, onde cada personagem, grande ou pequeno, encontra o seu lugar numa tapeçaria que trata de dor, responsabilidade, fé, ciência e redenção.
Tudo nasce de um erro. Edward e Alphonse Elric, órfãos e abandonados pelo pai, tentam desafiar a ordem natural das coisas e trazer de volta a mãe morta. Pagam o preço: Edward perde um braço e uma perna; Alphonse perde o corpo inteiro, restando-lhe apenas a alma, selada a uma armadura vazia. É uma das introduções mais impactantes do gênero shonen justamente porque não celebra a ousadia dos protagonistas, mas os marca com culpa, cicatriz e mutilação. Não é à toa que a Lei da Troca Equivalente — “para se obter algo, é preciso perder algo de valor equivalente” — ecoa tanto. A máxima não funciona apenas como regra de alquimia, mas como fundamento ético da série. Esse trauma inaugural é o motor de tudo. O que poderia ser apenas mais uma aventura juvenil ganha peso porque cada batalha, cada pista, cada viagem pelo vasto mundo de Amestris carrega a sombra desse pecado original. A ambição juvenil é transformada em peregrinação de redenção.
Os primeiros episódios, com suas tramas quase independentes, como o falso profeta Cornello em Liore, a cidade mineradora de Youswell, o trem sequestrado, lembram as jornadas clássicas de heróis errantes. Há uma atmosfera quase de contos folclóricos, onde cada parada acrescenta uma lição e um obstáculo. Mas aos poucos a narrativa se adensa. A introdução de personagens como Roy Mustang e Maes Hughes desloca o eixo para dentro do próprio Estado de Amestris. A morte de Hughes, em especial, funciona como divisor de águas: o tom se torna mais sombrio, a conspiração mais evidente, e os irmãos percebem que não estão apenas em busca de restaurar corpos, mas enfrentando uma engrenagem de poder muito maior.
Essa estrutura de crescimento, em que o micro abre espaço para o macro, é um dos grandes acertos de Brotherhood. O anime nunca abandona a empatia pelos dramas individuais, como Winry chorando ao lembrar da família perdida na guerra de Ishval, Scar lutando contra seu ódio, Hawkeye guardando em suas costas o segredo da alquimia flamejante, mas sempre coloca esses dramas no contexto de uma conspiração política e metafísica. Aos poucos, descobre-se que todo o país de Amestris foi moldado como um imenso círculo de transmutação, construído ao longo de séculos para servir ao plano do “Pai”, a entidade por trás dos Homúnculos. A escala narrativa se amplia até tocar o cósmico, sem perder o vínculo humano.
A guerra de Ishval é talvez o exemplo mais forte de como Brotherhood equilibra fantasia e comentário social. O massacre de um povo inteiro em nome da unidade nacional é mostrado em flashbacks dolorosos: soldados transformados em assassinos, crianças mortas, cidades arrasadas. Scar, sobrevivente marcado pelo trauma, encarna a ferida aberta. Sua fúria contra os Alquimistas Federais é compreensível, e o anime não a romantiza nem a condena totalmente: mostra o paradoxo de um homem que se tornou aquilo que odiava, usando a própria alquimia para matar, em um dos melhores arcos de violência cíclica que vemos por aí.
É nesse arco que Mustang também se revela, não apenas como “o alquimista de fogo” ambicioso por poder, mas como um homem que carrega culpa e deseja reformar o país de dentro. O idealismo dele contrasta com a brutalidade de personagens como Kimblee, que veem a guerra como oportunidade estética para o caos. Brotherhood não evita o desconforto: mostra que os heróis também foram cúmplices, que a redenção precisa vir com responsabilidade, e que a violência deixa marcas que nenhum poder mágico é capaz de apagar.
Um dos riscos da narrativa era reduzir os antagonistas a vilões caricatos. Mas Arakawa, e a adaptação, optam por algo mais complexo. Cada Homúnculo encarna um pecado capital, mas não como alegoria rígida: são personagens que vivem essas falhas de forma quase trágica. Inveja, em sua morte, revela-se apenas uma criatura pequena e patética, incapaz de lidar com sua insignificância. Ganância, fundido a Lin Yao, descobre que a amizade e o sacrifício têm mais valor do que possuir tudo. Luxúria e Gula, mesmo sem grande profundidade, funcionam como forças de sedução e voracidade. Bradley, o Führer, é talvez o mais intrigante: criado para ser a Ira, mas exibindo um autocontrole frio e calculado, como se o título de “pecado” fosse apenas máscara para a banalidade do mal.
O cenário de Brotherhood é tão rico quanto seus personagens. Amestris mistura elementos da Europa industrial, com seu militarismo e arquitetura austera, com uma geopolítica inventada que reflete questões muito reais. O contraste com Xing, com sua alquimia medicinal e espiritual, amplia a noção de que não há uma ciência única, mas múltiplas formas de interpretar a energia da vida (inclusive, sempre torci por outras histórias que expandem esse universo). O Forte Briggs, no norte gelado, é exemplo de como os ambientes se transformam em personagens: a muralha de gelo e sua comandante, Olivier Armstrong, representam uma dureza pragmática que contrasta com a intriga política de Central.
Esse mundo é ao mesmo tempo fantástico e reconhecível, o que permite ao espectador refletir sobre sua própria realidade. Toda a longa construção desemboca no arco final, o “Dia Prometido”. É raro ver um anime conduzir uma batalha tão longa com tamanha clareza. Cada núcleo de personagens tem função, cada sacrifício pesa, cada vitória parcial é fruto de escolhas anteriores. A cegueira imposta a Mustang, a revelação de que Selim, o doce filho de Bradley, é na verdade o Homúnculo Orgulho (o vilão mais sinistro da série), a reviravolta de Scar e a fusão de Ganância com Lin são peças de um tabuleiro que culmina na queda do Pai.
Nesse sentido, talvez o maior mérito de Brotherhood seja sua capacidade de amarrar tudo no fim, condensando os fios soltos em uma batalha coletiva, onde todos — dos protagonistas aos coadjuvantes — têm um papel fundamental. Não é apenas Edward contra o “Pai”, mas uma rede de personagens que carregam consigo suas histórias, suas feridas e suas escolhas. O sacrifício de Alphonse para restaurar o braço do irmão, a recusa final de Edward em manter o poder da alquimia para recuperar Al, a derrota de Pai arrastado para dentro do Portão, tudo ecoa a mesma lição: que não há atalhos, que nenhum poder pode suprimir a dor e a responsabilidade da vida humana.
O epílogo, com Edward abrindo mão da alquimia e escolhendo seguir uma vida comum ao lado de Winry, fecha o círculo iniciado no erro original. Não se trata de um final grandiloquente, mas profundamente coerente: ao aceitar os limites do humano, os irmãos Elric conquistam justamente aquilo que buscavam desde o começo — não a onipotência, mas a possibilidade de viver de forma inteira. É um fecho raro em sua combinação de emoção, clareza e maturidade, que ressoa muito além dos créditos finais.
Visualmente, a série não é a mais ousada da animação japonesa, mas compensa com consistência e energia. As batalhas são claras, intensas e bem coreografadas, com uso criativo das transmutações como extensão da personalidade dos personagens. Mais do que pirotecnia, as lutas funcionam como encenações de ideias: Scar riscando a pedra como ato de negação e vingança, Mustang carbonizando inimigos com um estalar de dedos como símbolo de poder contido e devastador, Edward reconfigurando o espaço ao redor com as mãos nuas, sem círculos, como quem remodela o próprio destino. Cada combate é espetáculo e discurso ao mesmo tempo.
No todo, Fullmetal Alchemist: Brotherhood é uma obra que consegue ser, ao mesmo tempo, acessível como um shonen de aventuras e densa como uma parábola filosófica. Ela questiona fé, ciência, Estado, guerra, família, sempre através da lente de personagens que sentimos próximos. Se a jornada começa como a de dois garotos tentando corrigir um erro juvenil, termina como um tratado sobre humanidade, perda e redenção. Brotherhood honra o título: é, de fato, sobre fraternidade, entre irmãos de sangue, entre povos que se enfrentaram, entre seres humanos diante da mesma Verdade.
Fullmetal Alchemist: Brotherhood – Japão, 5 de abril de 2009 a 4 de julho de 2010
Criação e desenvolvimento: Hiromu Arakawa (baseado no mangá Fullmetal Alchemist)
Direção: Yasuhiro Irie, entre outros
Roteiro: Hiroshi Ōnogi, entre outros
Elenco: Romi Park, Rie Kugimiya, Shin-ichiro Miki, Fumiko Orikasa, Kentarō Itō, Kenta Miyake, Hidekatsu Shibata, Iemasa Kayumi, Kikuko Inoue, Minami Takayama, Megumi Takamoto, Keiji Fujiwara, Unshō Ishizuka, Mayumi Yamaguchi, entre outros
Duração: aprox. 25 min. por episódio (64 episódios)