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Crítica | Fullmetal Alchemist – Vol.1

por Giba Hoffmann
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No mangá, como nas outras vertentes de quadrinhos, se faz presente de forma realçada a conhecida tensão entre forma e conteúdo, estilo e substância. A liberdade criativa praticamente ilimitada cobra seu preço ao autor na exigência de um sequenciamento eficiente em montar narrativas com poucas palavras. A beleza dos grandes trabalhos da nona arte costumeiramente se dá no encontro de um equilíbrio até então inédito entre o visual e o verbal, e a abordagem tradicionalmente crua do nanquim-e-papel do mangá é um terreno propício a mais experimentações de estilo do que pode imaginar o leitor menos acostumado com as produções nipônicas.

Por outro lado, algumas das tendências do meio favorecem justamente os exageros em determinada frente, comumente em detrimento à outra. Ainda que acreditemos que a popularização da mídia a nível global não tenha necessariamente a desvirtuado mais do que se ela se mantivesse restrita a um nicho, e que o alerta possa valer a praticamente qualquer vertente da cultura pop, é interessante pensar na famosa crítica de Hayao Miyazaki ao efeito danoso da “cultura otaku” sobre as produções de que ela própria se alimenta. No imenso volume de séries estreando a todo momento no mundo dos mangás, é certo que a auto-referencialidade tem se tornado danosa no sentido em que os lugares-comuns e estruturas já conhecidas e amadas pelos leitores por vezes pesem mais do que a inspiração em fazer algo realmente novo. Muito tempero pra pouca salada, muito estilo pra pouca substância.

Fullmetal Alchemist tem estilo e substância. Trata-se de uma obra que não se vê na necessidade de tirar daqui pra pôr ali – e não é difícil pensar que muito de seu inesperado sucesso se deve justamente a isso. Isso não quer dizer que não se trate de uma obra explicitamente derivativa. Em nota nos conteúdos extras já do primeiro volume, a autora Hiromu Arakawa já deixa claro sua expectativa de que a exploração dos principais temas contidos na obra seja recebida pelos leitores de forma semelhante a quem assiste a um filme B na televisão, daqueles que te fazem reagir com um sonoro: “Mas o quê!?”.

Assim, temos um divertidíssimo mangá de demografia shonen protagonizado por duas crianças e repleto de personagens extravagantes, aventuras e batalhas absurdas e gags hiperbólicas típicas do “gênero”. Até aí, nada fora do esperado – mas cabe apontar que aqui esses lugares-comuns são todos usados com a rara eficiência dos grandes sucessos do gênero. Ao mesmo tempo, seus temas centrais envolvem questões a respeito da possibilidade ou não da existência de Deus, de justiça e equilíbrio em um universo atomístico, os horrores e o sentido da guerra e a moralidade daqueles que dela participam, tudo isso embalado por simbologias emprestadas da alquimia, waidanshu e teosofia.

A seriedade com que a obra retoma esses temas é a mesma com a qual a boa ficção especulativa faz com os artigos científicos de ponta nas áreas sobre as quais busca inspiração. Longe de intentar qualquer profundidade para além daquilo que interessa na narrativa, a riqueza simbólica e temática da série está a serviço antes de tudo de um desenvolvimento fortíssimo de personagens, seguido de perto por um enredo empolgante que traz de tudo um pouco: espionagem, conspiração, drama, fantasia e (muita) comédia.

Esse conjunto de sucesso já aparece bem concretizado neste volume inaugural. Os capítulos iniciais, Os Dois Alquimistas O Preço da Vida são um exemplo de introdução perfeita para um serial. É aqui que somos muito bem apresentados aos Irmãos Elric – o alquimista federal Edward e seu irmão mais novo, Alphonse. Após uma primeira página sucinta e impactante, mostrando Ed agonizando a perda de sua perna e o desaparecimento inexplicável de seu irmão em uma tentativa de transmutação, a história da ida dos irmãos à cidade de Liore constrói muito bem mundo e personagens, através da empolgante história da investigação e desmascaramento de um falso profeta que tem se aproveitado da esperança da população local e manipulado sua fé com o uso da alquimia para realizar “milagres”.

Impressiona a precisão da narrativa em nos informar o essencial a respeito dos personagens, ao mesmo tempo em que a trama ecoa tematicamente seus arcos pessoais. Se formos buscar um comparativo na mitologia grega, as jornadas dos heróis de shonen tradicionalmente remontam às aventuras de figuras como Hércules, Aquiles ou Perseus. Mas quantos heróis são baseados em Ícaro? A figura trágica do jovem, que ignorou os avisos do saber comum e do bom senso e ousou chegar perto demais do Sol, raramente é lembrada sob o prisma heroico, consistindo antes no protagonista de um mito que adverte contra os perigos da falta de prudência na busca pelo conhecimento.

Assim, é muito interessante que vejamos aqui Ed e Al se opondo ao Pai Cornello, que se diz apóstolo do deus Leto, o próprio Sol. Mediante o ataque do figurão, em uma cena repleta de twists bem construídos, descobrimos que Ed não tem o braço direito nem a perna esquerda, enquanto que Alphonse não passa de uma alma habitando uma armadura vazia. Marcas pesadas de um erro imperdoável, e uma vida de semi-existência. Seus corpos danificados representando a cicatriz da queda de quem tentou chegar perto demais da Verdade, ao mesmo tempo as poderosas próteses de aço de Ed e o corpo metálico invulnerável à dor de Al são a fraqueza transformada em potência, o flagelo em arma e recurso.

A cena resgata muito bem o tema explorado na relação da dupla com a fiel fervorosa Rose, e é cativante ver aqui já uma dualidade importante na caracterização do jovem Edward. Ao mesmo tempo em que ele sustenta de maneira prepotente a postura de quem de fato conhece a ordem e a verdade das coisas como são (como na fala icônica em que recita para Rose os ingredientes que definiriam a existência de um ser humano – enquanto amontoado de átomos, é claro), sua fúria mediante a charlatanice de Cornello entrega a dor que carrega como punição por ter desafiado esta ordem que, afinal de contas, ainda não lhe faz sentido por inteiro. A fé barata de Cornello revolta Ed justamente na medida em que trata levianamente da questão da Verdade, e dá ordens ao Sol sem sequer imaginar a dor que se abate sobre quem realmente se propôs tal empreitada, apenas para sofrer tamanha queda que agora eles tentam reverter. Com uma introdução como essas, tem como não se sentir imediatamente cativado pela aventura dos irmãos Elric?

A Vila das Minas de Carvão A Batalha no Trem continuam a construção do mundo de Fullmetal Alchemist, acompanhando mais duas paragens dos irmãos Elric em sua busca pela Pedra Filosofal. Nas minas de Youswell, vemos nosso Alquimista de Aço ser tratado com rancor e desprezo por parte dos habitantes do local quando eles descobrem se tratar de um alquimista federal. A história nos mostra um pouco das injustiças perpretadas pelo governo militar de Amestris, ao mesmo tempo em que descobrimos mais sobre a dinâmica entre Ed e Al, em especial a natureza mais ponderada do irmão mais novo, em contraste com o mais velho que, ao que parece, tende sempre a estar mais esquentado. A resolução que Ed encontra para opor o infame Yoki, o terrível administrador das minas, é tão ingeniosa quanto a encontrada pelos jovens em Liore, e a história entretém como uma bela trama episódica ao mesmo tempo em que estabelece o jeito próprio de Edward de ser um oficial do governo, em seu misto carismático de questionador nato das leis e pura ingenuidade infantil.

Na mesma linha, A Batalha no Trem traz mais uma aventura episódica que novamente nos mostra mais do belíssimo mundo steampunk de Amestris, em um conflito gerado por mais um dos esqueletos no armário do Exército do pais (começo a notar um certo padrão!). Após uma segunda aventura praticamente inteira na base da conversa, o ataque dos terroristas serve de ocasião para nos mostrar um pouco do que esperar do delicioso misto de tiroteios e magia alquimia steampunk, muito bem servido nos traços expressivos de Arakawa, que compensa bem a eventual simplicidade dos backgrounds com momentos de ação dinâmicos e muito bem realizados. Mais uma vez temos Ed e Al se usando de diversos artifícios criativos para lidar com a crise, e neste ponto eu confesso que leria com muito prazer uma série episódica contando as aventuras dos irmãos pelo mundo, resolvendo crises do tipo dessa forma inteligente e carismática.

Tão bem equilibrados e executados de forma tão cuidadosa e precisa que são, ao longo dos quatro capítulos iniciais o leitor se encontra já praticamente ambientado por completo no memorável sci-fantasy steampunk de Fullmetal Alchemist. A série toma seu tempo para construir magistralmente bem seus protagonistas e sua busca pela Pedra Filosofal e dá pistas sobre os misteriosos opositores tatuados com o Ouroboros e sobre o funcionamento do governo militar de Amestris. O volume encontra tempo ainda para introduzir brevemente alguns dos aliados da dupla de alquimistas, mas são eles o foco aqui neste momento inicial. Escolha que dá frutos e que cativa o leitor (e mesmo o releitor) para voltar para o volume seguinte e saber mais sobre essa obra única. Somando estilo e conteúdo, já neste primeiro volume vemos bem representado o nível de detalhe que fez com que a série entrasse para a galeria de grandes obras do mangá.

Fullmetal Alchemist – Vol. 1 (鋼の錬金術師, Hagane no Renkinjutsushi) – Japão, Janeiro de 2002
Publicações no Brasil: Fullmetal Alchemist #1 e #2 (Ed. JBC, Fevereiro/2007); Fullmetal Alchemist #1 (Ed. JBC, Julho/2016)
Roteiro: Hiromu Arakawa
Arte: Hiromu Arakawa
Editora: Square Enix
Páginas: 192

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