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Crítica | Fundação – 3ª Temporada

Um antagonista fora dos planos.

por Kevin Rick
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A terceira temporada de Fundação chega consolidando aquilo que as duas anteriores já haviam estabelecido: trata-se de uma das produções mais ambiciosas da ficção científica televisiva contemporânea, tanto no aspecto estético quanto no escopo narrativo. O desafio de traduzir o legado monumental de Isaac Asimov para a linguagem da TV continua a ser quase impossível, e a série da Apple TV+ nunca escondeu que não pretende ser uma adaptação literal, mas sim uma reinvenção. O segundo ano já havia mostrado como esse projeto podia oscilar entre a grandiosidade e a irregularidade, condensando séculos de história em dez episódios. Agora, no terceiro ano, o mesmo dilema retorna, talvez de forma ainda mais intensa, com uma nova temporada que segue fascinante em suas ideias, apesar de alguns tropeços na condensação da narrativa.

O coração da temporada continua sendo o núcleo imperial dos Cleons, e aqui talvez tenhamos a melhor versão até agora da ideia de múltiplos monarcas geneticamente idênticos, mas radicalmente diferentes na personalidade depois do adultério na dinastia. O Irmão Dia (Cleon XXIV), vivido por Lee Pace com uma mistura precisa de empatia inesperada e arrogância ainda latente, ganha contornos mais humanos. Pela primeira vez, o personagem parece menos uma caricatura de tirano e mais alguém em conflito com as responsabilidades e com o peso histórico de sua linhagem. É um Dia que hesita, que demonstra empatia e que quase vislumbra a possibilidade de romper com o ciclo de brutalidade da dinastia genética. Sua trajetória culmina de maneira trágica, com sua morte servindo tanto como catarse narrativa quanto como lembrete de que nem mesmo uma mudança individual é suficiente para interromper o colapso do Império. Ainda assim, seu arco se destaca pela nuance e pelo contraste com os Dias anteriores, provando que a adulteração da linhagem genética rendeu frutos dramáticos interessantes, além do personagem protagonizar uma trama interessantíssima quando pensamos no aprofundamento de mitologia desse universo.

Se Dia ganha humanidade, Crepúsculo se revela como talvez o personagem mais intrigante da temporada. O Crepúsculo aqui começa como um conciliador, quase um diplomata. No entanto, esse homem que aparenta serenidade acaba se tornando um dos mais cruéis de toda a dinastia. O arco que o leva da relutância em aceitar a morte até a destruição fria de planetas inteiros é não só irônico, mas profundamente revelador. O personagem que parecia destinado a ser o mais apaziguador termina como o mais devastador, deixando para trás uma espiral de violência que marca a história da série e que, aparentemente, termina a dinastia genética. A interpretação de Terrence Mann traz camadas de dignidade e monstruosidade na mesma medida. Já o Irmão Alvorada, por sua vez, funciona como o contraponto mais idealista do trio. Ao longo das temporadas, vimos como esse clone mais jovem carregava impulsos de insurgência, de ruptura com a tradição. Aqui, isso se desenvolve com ainda mais clareza: ele se recusa a simplesmente aceitar os dogmas do Império, tenta buscar novas formas de relação com o poder e até mesmo se aproxima de uma consciência política própria ao se juntar à Fundação. É fascinante como os três Cleons desta temporada encarnam não apenas variações de personalidade, mas também três respostas possíveis ao peso da herança imperial: resignação violenta, empatia frustrada e insurgência juvenil. Juntos, eles representam a decadência de um sistema que se fragmenta por dentro, corroído pela manipulação genética, mas também pela simples inevitabilidade da mudança histórica.

Demerzel, como sempre, paira sobre todos esses conflitos, dessa vez como uma figura ainda mais paradoxal e em conflito com sua programação. Laura Birn continua a oferecer uma das melhores atuações da série, transmitindo simultaneamente autoridade e vulnerabilidade, crueldade e tragédia. Se no segundo ano seu passado foi revelado em flashbacks impactantes, aqui sua presença é mais subsidiária, mas não menos marcante. Cada momento em que aparece, Demerzel reforça o paradoxo central da série: a luta entre livre-arbítrio e determinação, entre a servidão imposta por sua programação e o desejo humano de autonomia que parece emergir em suas ações. Mesmo sem estar no centro da temporada, ela continua sendo um dos personagens mais fascinantes, uma verdadeira encarnação das contradições que Asimov sempre explorou entre a lógica fria da ciência e a imprevisibilidade das emoções humanas.

No campo dos antagonistas, a introdução do Mulo cumpre um papel central. Como figura mentalista de poder descomunal, capaz de subjugar exércitos inteiros com sua habilidade psíquica, ele traz uma sensação de urgência que faltava em outras ameaças da série – gosto como seu caráter anárquico ameaça o plano de Seldon. Seu poder é visualmente impressionante, mas mais do que isso, sua presença confere à temporada um clima de inevitabilidade. Há algo de apocalíptico em sua ascensão, um lembrete de que nem a psico-história de Seldon consegue prever todos os elementos do futuro. O Mulo é um desvio estatístico tornado carne, um “cisne negro” que ameaça implodir toda a lógica do plano de Hari. É interessante como a série opta por dar a ele momentos alegóricos, encontros mentais carregados de simbolismo, que funcionam como metáforas visuais da luta entre destinos traçados e escolhas pessoais. Por outro lado, é preciso reconhecer que a construção do Mulo também sofre com a pressa. Sua ascensão acontece rápido demais, sua consolidação como ameaça galáctica parece apressada, e o embate final chega de maneira quase abrupta. A revelação sobre Bayta também é ruim, com uma reviravolta que não é orgânica e que enfraquece o peso do personagem. O antagonista acaba perdendo força por causa de uma decisão narrativa questionável, mas ainda deixa sua marca.

Gaal continua sendo a protagonista espiritual da série (apesar de eu preferir Demerzel nesse palco), como o eixo em torno do qual gravitam a progressão do plano principal que deu estopim à história. Sua jornada com o Mulo, marcada por visões e confrontos mentais, tem momentos poderosos, mas também revela o lado mais melodramático do roteiro que víamos no ano anterior. Por vezes, acho Gaal isolada dentro da série, o que atrapalha certos blocos narrativos, e é por isso que gostei muito de seu encontro com Demerzel, levando às linhas narrativas da obra a se convergirem melhor. Ainda assim, os dilemas que ela enfrenta continuam ressoando: como lidar com o peso de prever futuros terríveis, como aceitar ou rejeitar a inevitabilidade, como encontrar humanidade em meio ao cálculo frio da psico-história. Gaal é, ao mesmo tempo, heroína e mártir, e sua trajetória segue sendo um dos motores filosóficos da série.

Do ponto de vista da construção de mundo, a terceira temporada sofre com um problema recorrente da série: a falta de tempo para desenvolver plenamente suas ideias. Os saltos temporais, que sempre foram uma marca de Fundação, funcionam como recurso narrativo elegante, mas aqui parecem cada vez mais um obstáculo. Mycogen, por exemplo, merecia mais tempo de tela, com todo aquele dogma deturpado inundando uma já curiosa mitologia. O Conselho Galáctico, com todas as suas disputas internas, aparece menos do que deveria. Os comerciantes, que poderiam oferecer uma perspectiva mais ampla sobre a galáxia e sua economia, mal são explorados. Em vez disso, a temporada parece condensar esses elementos em breves cenas, como se estivesse sempre correndo para chegar ao próximo clímax, com vários dos coadjuvantes sendo descartados. Isso gera uma sensação de superficialidade, como se estivéssemos diante de vislumbres de um universo riquíssimo, mas sem a chance de realmente habitá-lo. Para uma série que se propõe a lidar com séculos de história, a pressa é uma escolha perigosa, por mais que as elipses entre as temporadas venham funcionando e apesar da mudança total de personagens seguir sendo um ponto positivo.

Visualmente, a produção continua a ser uma das séries mais impressionantes em exibição. Os palácios dourados de Trantor, os campos desolados de Kalgan, os espaços mentais do Mulo e de Gaal, tudo é filmado com um cuidado estético que combina grandiosidade e intimismo. As batalhas espaciais têm peso e escala, como nas incríveis sequências de destruição dos planetas, mas também há atenção para os detalhes sutis nos cenários fechados. Tecnicamente, a série é impecável, e mesmo quando o roteiro tropeça, a experiência sensorial se mantém envolvente.

Se pensarmos na temporada como um todo, a impressão final é bastante positiva, a despeito de algumas ressalvas que pontuei. O arco dos Cleons é exemplar, riquíssimo em nuances, bem interpretado, cheio de momentos memoráveis. Já o arco de Gaal e do Mulo, apesar de sua importância e de uma boa construção antagonista, sofre com a pressa e com uma reviravolta que dilui seu impacto. Demerzel segue como a peça mais intrigante do tabuleiro, mesmo com menos espaço. E o universo ao redor, vasto e cheio de potencial, segue sendo muito intrigante, em especial com o gancho enlouquecedor dos robôs. Só espero que essa construção de mundo não continue sendo mais insinuada do que explorada.

Fundação segue grandiosa, sempre mirando alto, mesmo com seus problemas. É uma obra que não se contenta em ser uma ficção científica comum; quer ser um épico filosófico, uma ópera espacial, uma metáfora sobre a história humana. Nem sempre consegue. Mas, quando acerta, nos lembra porque Asimov foi tão revolucionário e porque ainda vale a pena acompanhar essa adaptação ousada. A terceira temporada reafirma tanto as qualidades quanto os defeitos do projeto, com um desfecho que, entre tropeços, prepara um terreno espetacular para a já anunciada quarta temporada!

Fundação (Foundation) – 3ª Temporada | EUA, 2025
Criação e desenvolvimento: David S. Goyer, Josh Friedman (baseado no trabalho de Isaac Asimov)
Direção: David S. Goyer, Roxann Dawson, Tim Southam, Christopher J. Byrne
Roteiro: David S. Goyer, Jane Espenson, Leigh Dana Jackson, Greg Goetz, Eric Carrasco, David Kob, Caitlin Parrish, Tyler Holmes
Elenco: Jared Harris, Lee Pace, Lou Llobell, Laura Birn, Terrence Mann, Cassian Bilton, Cherry Jones, Brandon P. Bell, Alexander Siddig, Pilou Asbæk, Synnøve Karlsen, Cody Fern, Troy Kotsur, Tómas Lemarquis
Duração: 546 min. (10 episódios)

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