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Crítica | Fundação, de Isaac Asimov (1951)

por Luiz Santiago
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Qualquer pessoa que se aventurar pelas páginas de Fundação (1951), primeiro livro da trilogia homônima que viraria uma série com o lançamento de suas sequências e prelúdios, deve saber que a obra não foi concebida como um romance. Trata-se, na verdade, da junção de 4 contos que Isaac Asimov escreveu entre 1942 e 1944, aos quais foi adicionado um capítulo inédito, que é a introdução de toda a trama (e a melhor parte do livro), chamada Os psico-historiadores. No livro, a divisão ficou assim:

  • Parte I – Os Psico-historiadores (inédito);
  • Parte II – Os Enciclopedistas (originalmente Foundation, conto publicado em maio de 1942);
  • Parte III – Os Prefeitos (originalmente Bridle and Saddle, conto publicado em junho de 1942);
  • Parte IV – Os Comerciantes (originalmente The Wedge, conto publicado em outubro de 1944);
  • Parte V – Os Príncipes Mercadores (originalmente The Big and the Little, conto publicado em agosto de 1944).

A princípio baseado no famoso livro de Edward Gibbon, A História do Declínio e Queda do Império Romano, Fundação mescla acontecimentos e tecnologias do século vinte com comportamentos e padrões históricos analisados através da matemática, estatística, psicologia, sociologia e geopolítica através dos tempos, dando uma visão bastante realista dos acontecimentos nas entrelinhas de qualquer grande Império que conhecemos: após uma longa jornada para se erguer e dominar um número grandioso de pessoas, esses colossos políticos tendem a enfrentar a sua inevitável queda.

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Vista do lado periférico da Via Láctea, no cenário de Fundação. Perceba que Terminus é, de fato, o “último planeta” do setor. A Terra está do outro lado da galáxia e Trantor no centro.

A história do livro se passa em um futuro distante, que se enquadra na seguinte teia de eventos. A humanidade se desenvolveu grandiosamente após os seus primeiros passos no ramo da robótica, no final do século XX. Ganhando o espaço, colonizando mundos e alterando ainda mais o seu interior, a Terra ficou cada vez menor diante de suas realizações (leiam Pedra no Céu ou 827 Era Galáctica para entender melhor o péssimo estado do planeta em seu futuro distante, no universo de Asimov) e é vista, com o passar dos milênios, apenas como uma curiosidade arqueológica. No ano 12.300 E.C. (Era Comum, a nossa era) metade dos mundos habitados da Via Láctea fazem parte do Império de Trantor. Em 12.500 E.C., o planeta se torna o centro de um Império Galáctico. O calendário da Era Comum é extinto e surge o calendário da Era Galáctica (E.G.), assim, 12.500 E.C. se torna 1 E.G.

Sob domínio de Trantor a Via Láctea é regida com mão de ferro, a maior parte dos planetas alimentando-o com matérias-primas das mais diversas origens, uma situação que começa a mudar sensivelmente a partir do ano 12.067 E.G., diante das previsões de Hari Seldon sobre a iminente queda do Império Galáctico, algo que naquele momento parecia impossível. A ideologia de um momento encontra-se com a sua realidade e a crítica histórica se faz.

Em Os psico-historiadores, Isaac Asimov desenvolve a excelente ideia do que é a ciência da Psico-história e faz isso de uma forma empírica, observando o movimento das massas e não de um único indivíduo, modelo de julgamento que hoje fazemos mesmo sem perceber (pense em qualquer comportamento de massa como torcidas em um jogo de futebol ou manifestações políticas com grupos rivais e tente prever as ações dessa quantidade de indivíduos frente a análises matemáticas/estatística, sociológicas e psicológicas, e você tem um vislumbre do que é a psico-história na prática).

A partir desse momento, o autor desenvolve uma narrativa fascinante sobre a queda patética de um grande Império e a demora para que ele morra por completo. À medida que o livro avança, temos ajustes particulares ocorridos na História e que, curiosamente, também possuem seu exemplo na realidade humana, basta tomarmos por modelo a ideia para a Fundação, que pode ser vista até como uma previsão do autor para o futuro. Imagine uma “enciclopédia galática”, feita de forma colaborativa, com o passar dos anos, e que tem a função de tornar acessível o conhecimento sobre tudo o que a humanidade já produziu, em todos os seus detalhes possíveis. Isso soa familiar? Soa um pouco como Wikipedia, pra vocês? E assusta em pensar que isso foi escrito em 1951?

A Fundação tem, portanto, a função de diminuir o impacto das trevas intelectuais que a queda do Império Galáctico iria trazer para todos (Asimov tentando remediar uma nova Idade Média/Moderna?). Na trama isso é visto como uma ameaça, claro, e Hari Seldon é julgado e exilado junto com um grupo de estudiosos em um planeta no limite da galáxia, Terminus. É nesse recanto abandonado e praticamente estéril da Via Láctea que os Enciclopedistas irão levar adiante a missão de produzir conhecimento. O calendário marca o ano 12.069 E.G., mas a partir deste momento temos uma outra forma de datação. Desponta o ano 1 E.F. (Era da Fundação).

***

O grande problema do livro é a sua descontinuidade narrativa para personagens e temas centrais, mas isto, como vocês viram no início da crítica, tem uma justificativa literária bastante plausível. Todavia, permanece o problema. Asimov poderia muito bem ter trabalhado elementos de ligação mais sutis entre uma parte e outra, não rompendo bruscamente com personagens e situações com as quais nos familiarizamos, deixando-nos terrivelmente confusos com a profusão repentina de nomes que surgem em contextos inteiramente diferentes, especialmente em Os Comerciantes e Os Príncipes Mercadores, as partes menos férteis de todo o volume.

Essa composição por blocos, herança dos contos de origem de Fundação, pode ter também um significado maior, que é a passagem do tempo e as mudanças que ele traz consigo. Há no mínimo algumas décadas de diferença entre uma parte e outra (às vezes, até entre um capítulo e outro) e isso força o leitor a um exercício de adequação constante, muitas vezes olhando nomes de pessoas ou planetas nas páginas anteriores para ver se não perdeu nenhum detalhe da história ou se está lendo sobre o que ele acha que está lendo mesmo. O todo não é cifrado ou confuso, apenas algumas partes. De uma forma ou de outra, justificada ou não, a origem em separado dos blocos dois a cinco do livro formam uma pequena mácula de estruturação em Fundação.

O final do volume nos traz a sensação de que o problema não resolvido irá seguir o padrão psico-histórico previsto, mas isso vem com um pequeno ponto de interrogação sobre os ajustes na linha do tempo que trará para a periferia da Galáxia e, como isso, afetará as previsões de Hari Seldon.

Cheio de indicações políticas, econômicas, religiosas e sociais, Fundação é um livro para se ler com atenção e desfrutar de maneira rápida. A narrativa é fácil, à exceção das abruptas passagens de cenários entre as partes. A despeito disso, o leitor conseguirá se adaptar facilmente às situações e crises pelas quais Terminus e seus planetas vizinhos (ou Trantor, lá no centro da galáxia) atravessará. Há duas ótimas cenas de julgamento no livro, uma crítica ferrenha ao cesaropapismo (no estabelecimento da ciência disfarçada de religião) e à plutocracia (no estabelecimento do consumo como base comum) e um retrato futurístico de nossa sociedade que dificilmente pode ser encontrado, tal e qual, em outras obras do gênero. Mesmo não sendo uma obra-prima, Fundação é um ótimo exemplar de como o bater das asas de uma “borboleta” em um certo momento da História pode causar desastres ou vitórias inimagináveis alguns séculos depois. Pensando bem, todo humano que já viveu neste planeta foi prova disso. E tudo indica que o padrão permanecerá enquanto houver humanos modificando constantemente o espaço onde habitam.

Fundação (Foundation) — Estados Unidos, 1951
Autor: Isaac Asimov
Lançamento no Brasil: Editora Aleph, 2009
Tradutor: Fábio Fernandes
240 páginas 

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