Home QuadrinhosMinissérieCrítica | G.O.D.S. (2023-2024)

Crítica | G.O.D.S. (2023-2024)

Um projeto homérico inacabado.

por Kevin Rick
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Jonathan Hickman sempre foi um autor interessado em mitologia, sistemas e engrenagens que sustentam universos de super-heróis. Em G.O.D.S., ambiciosa “minissérie” em oito edições publicada pela Marvel, o autor leva esse impulso ao limite e tenta criar não apenas uma nova equipe ou um novo canto do cosmo, mas uma cosmologia inteira, uma nova gramática para lidar com magia e ciência dentro do universo Marvel, bem como o início de uma redefinição da confusa lore em torno de entidades como o Tribunal Vivo, Eternidade, Lorde Caos e outros membros do panteão de deuses cósmicos da editora. É um projeto que, desde a primeira edição, se apresenta como maior do que os personagens que o habitam, e talvez seja justamente isso que o torna fascinante e frustrante na mesma medida.

A narrativa acompanha principalmente Wyn (claramente inspirado em John Constantine, mas menos dúbio e menos carismático), um agente imortal que atua como emissário de uma das duas forças primordiais que regem a realidade: The-Powers-That-Be, representando o impossível, o mágico, o transcendente; e The-Natural-Order-of-Things, que encarna o racional, o científico, o que pode ser medido. Em oposição ou em complemento a Wyn, surge Aiko, sua ex-esposa e agora representante da Ordem Natural. Essa relação pessoal, marcada por perda, amor e diferenças “profissionais”, é o coração emocional de uma saga que, na superfície, parece só falar de conceitos cósmicos, mas que lida com dores humanas e de como todo esse vasto universo cobra o preço de pessoas normais – ou pelo menos o mais próximo possível disso frente a todas essas figuras super poderosas.

Cada edição avança como se fosse uma conversa entre ideias mais do que uma progressão clássica de trama, incluindo uma densa quantidade de exposição, seja em diálogos, seja em páginas unicamente para infodump. Logo no começo, somos transportados para um evento cataclísmico que ameaça a própria existência. Isso serve como catalisador para que Wyn, Aiko, o assistente Dimitri (um bom e velho alívio cômico) e até o clássico Doutor Estranho se envolvam em uma narrativa expansiva, cheia de artefatos enigmáticos e encontros com figuras cósmicas para que possamos conhecer os poderes abstratos que movem as engrenagens do universo.

Para quem gosta de mitologia – como eu – a leitura é um prato cheio, mergulhando em muito do que foi apresentado em Ultimates, de Al Ewing, para rearranjar a cosmologia da Marvel, começando pela criação de duas organizações que servem como controladoras ou, no mínimo, intermédios entre figuras ancestrais da galáxia. Não fica exatamente claro a posição ou intenção de ambas as ordens, mas é uma premissa interessante e um retcon suave para dizer que a Marvel sempre teve esses personagens cuidando das coisas por trás das lutas entre heróis. A HQ fica de fato fascinante quando os personagens começam a encontrar tais entidades, quando a narrativa expõe os papeis desses seres eternos e não os usa apenas como artifícios convenientes para grandes sagas, e especialmente quando a história começa a desenhar o equilíbrio e desequilíbrio entre tais monstros cósmicos, sua hierarquia, seus laços “familiares” e a sua importância para a Marvel. Um personagem em destaque, chamado In-Betweener, criado por Jim Starlin, é particularmente fascinante aqui como a balança de todas as coisas opostas.

Claro que às vezes Hickman tem uma tendência a escrever como se estivesse montando um manual de instruções para um universo futuro ou então às vezes se perde em sua própria ambição, com uma narrativa em que os personagens são subsidiários ao worldbuilding, mas há algo verdadeiramente curioso e inovativo aqui para adicionar camadas para o universo da Marvel, com escala grandiosa, conceitos abstratos fascinantes e até algum nível de densidade filosófica com nossas figuras protagonistas “pequenas” no meio de todo esse escopo, sendo que é nessa fricção que a série brilha quando os personagens se lembram de que não são apenas peças de um sistema, mas indivíduos tentando se agarrar a algo no meio do caos e como podem influenciar esse fluxo muito maior do que eles.

A arte de Valerio Schiti é crucial para tornar legível a vastidão abstrata do roteiro. Em vez de cair na tentação de deixar tudo etéreo demais, Schiti oferece texturas e rostos reconhecíveis dentro do surreal. Os cenários cósmicos se dobram sobre si mesmos, mas os personagens continuam palpáveis, quase próximos. É um contraste que sustenta a leitura: a grandiloquência das ideias e a intimidade dos traços. Mesmo assim, o artista não se desvia de designs caóticos, transformando as clássicas figuras dos cosmos, normalmente puxadas para algo humanoide, em monstros intergalácticos e interdimensionais dignos de conceitos metafísicos.

É uma pena, porém, que G.O.D.S. tenha um desfecho abrupto em apenas oito edições. Até onde pude entender, não houve um cancelamento oficial da HQ, sendo vendida como minissérie, mas é óbvio que as vendas baixas fizeram a Marvel cortar o projeto e que Hickman tinha mais história do que é apresentado aqui, com a reta final, principalmente a última edição, acelerando completamente a narrativa e deixando um milhão de pontas soltas. É uma “conclusão” frustrante, que diminui bastante a qualidade do resultado final da obra e deixa o leitor chateado com o fato de que, talvez, não tenhamos uma continuação para as ideias e conceitos vistos aqui (como aconteceu com a fase Krakoa do Hickman em X-Men…). O autor não pôde expandir a trama com o Tribunal Vivo, Eternidade e afins, tampouco teve tempo de chegar nos Celestiais e nos Beyonders.

No balanço final, G.O.D.S. é um projeto homérico que acabou antes mesmo de começar a se aprofundar no que parecia ser um mergulho galáctico infinito. Um convite para olhar para o universo Marvel por outra ótica, onde magia e ciência são apenas duas faces de uma disputa eterna que atravessa civilizações, amores e ruínas, G.O.D.S. entra para a minha lista de obras que terminaram antes do que deveriam. Não é uma obra-prima, mesmo em seu início, por ser uma produção mais lore do que trama propriamente dita, além de ser uma leitura exigente, que não entrega recompensas fáceis e que muitas das vezes soa confusa, mas que também não se contenta em repetir fórmulas. Como tudo de Hickman, pede paciência e retribui com a satisfação de sentir que há muito mais por trás do que conseguimos ver inicialmente. É uma pena que ele não tenha tido tempo para desenvolver tudo isso. Quem sabe a Marvel deixe ele revisitar essa obra no futuro.

G.O.D.S. — EUA, outubro de 2023 a agosto de 2024
Contendo: G.O.D.S. – #01 a 08
Roteiro: Jonathan Hickman
Arte: Valerio Schiti
Cores: Marte Gracia, Fer Sifuentes-Sujo
Letras: Travis Lanham
Editoria: C.B. Cebulski, Tom Brevoort, Annalise Bissa, Martin Biro
Editora: Marvel Comics
272 páginas

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