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Crítica | Gandhi (1982)

por Luiz Santiago
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Mohandas Karamchand Gandhi, ou “Mahatma — A Grande Alma“, é mundialmente conhecido como um indivíduo símbolo da paz, inspiração para diversas outras importantes vozes contra a injustiça e a segregação; notável por ter um comportamento que destacava os valores da crença tradicional hindu, como a verdade (satya) e não violência (ahimsa). A cinebiografia desta figura histórica, dirigida por Richard Attenborough e lançada em 1982, está entre as obras inesquecíveis da Sétima Arte que, em sua produção original, nenhum grande estúdio quis financiar. O filme é também a realização de um sonho de muitos anos do diretor e o trabalho que deu O Papel da vida a Ben Kingsley, agraciado com um dos oito Oscars que a fita recebeu.

A trama do filme se passa entre o dia 7 de junho de 1893 e termina no dia do velório de Gandhi, em 31 de janeiro de 1948. De sua primeira experiência com uma atitude de discriminação, em um trem a caminho da África do Sul; até o dia em que foi assassinado, o Mahatma representou uma tipo de ideal de luta que marcaria nações e grupos rebeldes ao redor do mundo, especialmente pela maneira como pregava e exercia a não-violência. O roteiro de John Briley acompanha com bastante cautela os principais momentos históricos da Índia nas primeiras décadas do século XX e adiciona a estes eventos a “nova onda” de pensamento, liderada por Gandhi, não abandonando as críticas políticas e mesmo sociológicas que normalmente se faz ao princípio defendido pelo biografado.

A longa duração do filme — não plenamente justificada: existem muitas cenas que poderiam ser tranquilamente encurtadas, aceleradas ou retiradas da fita sem afetar negativamente o todo — nos permite considerar diversos aspectos pessoais e ideológicos do protagonista e ver como o diretor orquestrou quase sem tropeços os passos em seu país natal, marcando as grandes conquistas e também os terríveis momentos, como o infame Massacre de Amritsar, no Punjab, uma das cenas mais impactantes do longa e uma das mais bem dirigidas, com movimentos de câmera e ângulos tão variados e tão fora do que é esperado para este tipo de movimento que o espectador, por um momento, se vê imerso naquele cenário, como se vivenciasse o massacre, sentindo-se imediatamente impressionado pela técnica e ritmo empregados, algo que podemos notar também nas sequências de viagem de Gandhi pelo país, com belas paisagens na tela e impressionante orquestração de milhares de figurantes, especialmente na cena do funeral, dando ao filme o recorde de uso de extras na História do cinema até então.

Um pouco diferente de suas outras biopics, As Garras do Leão (1972), sobre Churchill e Chaplin (1992), Attenborough procurou trazer as discussões de caráter histórico a partir dos eventos pessoais do personagem e daí explorar ramificações internas e externas a ele, um modelo de representação que teve por objetivo aproximar o público ao máximo da figura, vendo o mundo a partir de seus olhos e julgando as muitas situações pelo seu sofrimento e ideias, deixando um pouco de lado a exploração das condições que geraram aquilo historicamente — ou mesmo as consequências a longo prazo: apenas informações simples do status de algumas províncias, pessoas, da própria Índia e Paquistão são fornecidos para o espectador nessas ocasiões. Este ponto narrativo da obra é o que incomoda a muitas pessoas, mas é bom destacar que não existe nenhum problema com o modelo, já que o filme não é um documentário, é um drama histórico com todas as licenças artísticas possíveis para representar e guiar essas sequências, dentre as quais destacamos a passagem do jovem advogado Gandhi pela África do Sul e boa parte de seu relacionamento familiar ou político.

Ao biografar figuras que motivaram ideais políticos, diretores e roteiristas sempre irão encontrar barreiras e necessidade de decisão complicadas, algumas delas dando a aparência de omissão, outras de reescrita e outras de alteração do que “realmente aconteceu“. O debate nesta seara, apesar de árduo, é sempre benéfico, mas novamente é preciso lembrar que o cinema destaca o entretenimento,  que pode afetar muitas escolhas finais. Em relação a Gandhi, o que mais acende os ânimos é a discussão política sobre o tipo de luta (ou não-luta) que ele propõe, algo que aos poucos gerou resultados, ganhou a mídia e deixou muita gente preocupada, vide os acontecimentos que se erguem na reta final da obra. Durante todo o trajeto de pouco mais de três horas de filme, o público poderá encontrar elementos históricos ou biográficos que não lhes agradarão, mas à parte este fator de enredo e interpretação histórica, poucas são as pessoas que devem encontrar sérios empecilhos técnicos na fita.

Considerando, primeiro, o ataque, a ala que mais deve receber pedradas, muitas delas merecidas, é a montagem. Por um lado, nós entendemos a proposta épica da película e notamos que o ritmo adotado sempre traz algo diferente para manter o espectador ativo, e isso vem de diversas formas, desde contra-planos rápidos, fazendo cenas ou sequências dialogarem, aumentando seu significado; até uma comparação mais profunda, posta de maneira muito inteligente nos momentos em que as notícias de jornal foram utilizadas para mostrar determinada situação presenciada por Gandhi, prisma que se altera no momento em que ele retorna da viagem, passando não do jornal para a análise da realidade, mas mostrando como a realidade pode ser bem diferente do que dizem os jornais. Claro que esses momentos não apagam os já citados blocos demasiadamente longos e lentos.

Dois grandes fotógrafos foram responsáveis pelo filme, Ronnie Taylor e Billy Williams, e o trabalho que fazem com a adequação de cores para construir períodos históricos inteiros é impressionante. O uso de uma paleta quente para alguns momentos de exploração cultural na Índia; o uso de paleta mais acinzentada para momentos de opressão e a introdução de cores adicionais (ou contrastantes ou em harmonia) dentro de cada bloco histórico, seja em iluminações especiais de casas ou prédios oficiais e festas, seja pela exploração das cores dos figurinos em contraste com a cor da pele dos atores, tudo foi pensado para causar um frequente universo de contrastes e posterior aproximação, unindo-se, como em um chamado final para a paz, na última sequência.

A música de Ravi Shankar toma a tradição hindu mas não se esquece da orquestração Ocidental nos momentos em que são necessárias, da mesma forma que motivos árabes e também sul-africanos aparecem pontualmente no filme. Em tudo, o diretor Richard Attenborough procurou ser inclusivo, trazendo para o seio da narrativa todas as culturas e manifestações que conseguiu harmonizar. O resultado foi esta obra que nos mostra que a luta pela paz e pela igualdade tem um preço, e que ela não gerará frutos com divisões entre pessoas, ideias, etnias e exclusões da cultura do outro. Parece contraditório, se olharmos os rumos históricos, mas é justamente esse tipo de contradição que o diretor nos convida a investigar. Gandhi é um filme sobre uma pessoa e seu olhar para muitos povos. A obra nos coloca sua busca pela liberdade, pela igualdade e pela paz. É um daqueles filmes que precisam ser conhecidos e revistos de tempos em tempos, já que a humanidade parece não ter aprendido a lição que tantas vidas custou e sabe-se lá até quando esta cegueira bélica e desprezo dos Estados e grupos ideológicos para com humanos que são diferentes, ou que querem viver com dignidade e alcançar direitos que lhes são negados, ainda irá durar.

Gandhi (1982) — Reino Unido, Índia, EUA
Direção: Richard Attenborough
Roteiro: John Briley
Elenco: Ben Kingsley, Candice Bergen, Edward Fox, John Gielgud, Trevor Howard, John Mills, Martin Sheen, Ian Charleson, Athol Fugard, Günther Maria Halmer, Saeed Jaffrey, Geraldine James, Alyque Padamsee, Amrish Puri, Roshan Seth, Rohini Hattangadi, Ian Bannen, Michael Bryant, John Clements, Richard Griffiths, Nigel Hawthorne, Bernard Hepton, Michael Hordern, Shreeram Lagoo, Om Puri, Virendra Razdan, Richard Vernon, Harsh Nayyar, Prabhakar Patankar, Vijay Kashyap, Nigam Prakash, Supriya Pathak
Duração: 191 min.

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