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Crítica | Ganga Bruta

Dois mundos em conflito.

por Luiz Santiago
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Ganga Bruta, de 1933, é considerado o grande longa-metragem de Humberto Mauro, e de fato notamos que este é o seu filme mais maduro em termos de técnicas de direção e uso de recursos visuais, sendo também um marco na passagem do cinema silencioso para o cinema sonoro no Brasil. Aqui, o diretor guia um enredo focado no personagem de Durval Bellini (Marcos), cuja vivência e sequência de ações poderiam, hoje, ser classificadas como produtos de uma “masculinidade tóxica”, fruto de uma sociedade ancorada num ideal neurótico e assassino de honra, que vê a mulher como um receptáculo virginal que não merece viver se, por algum motivo, mentiu sobre essa virgindade para o parceiro.  

O diretor explora, no protagonista, a visão de um homem vazio, atormentado pela memória de uma mulher que amou e que matou porque sentiu-se “enganado”, como os jornais dizem, ao noticiar o seu julgamento e absolvição por unanimidade (alguma surpresa, diante dessa normatização do feminicídio?). Através da criativa fotografia Afrodísio Pereira de Castro — com câmeras operadas por Edgar Brasil e Paulo Morano — temos composições que, desde o início, indicam um choque entre a “santidade do casamento”, mostrado sobre forte aura de luz branca, e o que aconteceria no quarto, alguns minutos depois. Embora a violência gráfica não apareça na tela, ela está presente em todo o filme, começando pelo assassinato da noiva, de quem vemos apenas o corpo caído, até as demonstrações de macheza e superioridade física que Marcos performa em Guaraíba, onde se exila após cometer o crime, mergulhando no trabalho de engenheiro. 

Em sua primeira versão de produção, Ganga Bruta seria filmado no Amazonas e no Pará, e se chamaria Dança das Chamas, com Raul Schnoor, Tamar Moema e Ruth Gentil no elenco. Contudo, esta segunda obra da Cinédia acabou sendo rodada na Ilha das Cobras e na Quinta da Boa Vista, Rio de Janeiro; e em Guaxindiba, São Gonçalo (RJ), entre 2 de setembro de 1931 e 21 de outubro de 1932. Mauro consegue manter aqui um de seus elementos recorrentes, que é a relação do indivíduo com a natureza, com o campo. Mas ele também insere em Ganga Bruta um outro componente: a chegada irrefreável da indústria e um tipo de realidade e sociedade que ele mesmo não gostava. O filme reflete visual e dramaticamente esse contraste entre a República Velha, agrária, moralmente rígida e retrógrada, com a máquina e “o futuro da nação“, com homens e mulheres livres e abertos a novas escolhas e experiências.

Adhemar Gonzaga, o produtor, concebeu o filme como uma fita silenciosa, mas posteriormente concordou em adicionar vozes, músicas e efeitos sonoros gravados em discos pelo sistema Vitaphone. Como estamos falando de uma criação do primeiro sopro do som no cinema (presente nos Estados Unidos desde 1927, com O Cantor de Jazz), é claro que não temos aqui um resultado notável. Nem perto disso, na verdade. Tanto os diálogos quanto a edição e a mixagem de som padecem das muitas limitações técnicas de sua época, e muitas delas não casam bem com a hibridez do longa, que é parcialmente falado, parcialmente escrito em intertítulos e parcialmente cantado. A trilha sonora de Radamés Gnatalli é boa, mas algumas canções parecem durar eternamente, por isso mesmo quebram o ritmo e a atmosfera necessária de cenas que seriam melhor servidas com apenas alguns versos cantados. Ainda assim, os momentos das canções Ganga Bruta (cantada por Jorge Fernandes), Teus Olhos…Água Parada (valsa cantada por Moacyr Bueno Rocha) e Côco de Praia nº1 e nº2 (também cantada por Moacyr Rocha) não passam batidos e definitivamente trazem trechos muito belos.

Ganga Bruta tem como âncora negativa a exaltação quase embasbacada do personagem de Marcos, o homem que cometeu um crime contra uma mulher, que foi perdoado sem ressalvas pela sociedade, mas que talvez não foi por ele mesmo. Há uma dose alta de ideias freudianas no roteiro de Mauro com Octavio Gabus Mendes, mas ao cabo, a ensaiada jornada de redenção desse que representa “outros tempos e outras mentalidades de Brasil” simplesmente não ocorre. Sua bestialidade é mantida, e me parece que ainda pior, pois está manchada de sangue e traz uma culpa e uma amargura não tratadas a tiracolo. Ainda assim, dá-se um encerramento familiar para ele, num cenário matrimonial feliz, não obstante mais um ato de violência cometido por ele — o novo arrependimento e a tentativa de salvar Décio (Décio Murillo), na fantástica sequência da cachoeira, não retira a responsabilidade de Marcos.

Tal arranjo poderia ser uma crítica do diretor ao acomodamento hipócrita dos costumes e à recompensa constante dada a indivíduos questionáveis no seio de nossa sociedade. Entretanto, não há elementos que indiquem isso, de modo que o encadeamento da obra me parece, além de abjeto, pouco coerente com as indicações narrativas criadas assim que Marcos se muda para Guaraíba. Claro que estamos falando de um filme de 1933, e um contexto histórico de produção, aplicação de ideias e composição de personagens deve ser atrelado ao julgamento desta camada de Ganga Bruta. Só que mesmo sob esse filtro, o problema permanece. Se no campo estético, a obra sobe muitos degraus na escala de qualidade; no caminho narrativo, ela faz o trajeto inverso, comprometendo a unidade do filme. Uma pepita coberta por uma camada áspera e feia. Uma legítima ganga bruta. 

Ganga Bruta (Brasil, 1933)
Direção: Humberto Mauro
Roteiro: Humberto Mauro e Octavio Gabus Mendes
Elenco: Durval Bellini, Dea Selva, Lu Marival, Décio Murilo, Andréa Duarte, Alfredo Nunes, Ivan Villar, Carlos Eugênio, João Baldi, Sérgio Barreto Filho, Francisco Bevilácqua, Ayres Cardoso, João Cardoso, Edson Chagas, João Fernandes, Adhemar Gonzaga, Glória Marina, Paulo Marra
Duração: 86 min.

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