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Crítica | Gatinhas e Gatões

por Iann Jeliel
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Gatinhas e Gatões

Gatinhas e Gatões é o primeiro filme da carreira de John Hughes, diretor conhecido popularmente por representar o espírito oitentista adolescente, cuja linguagem estabeleceu as regras da comédia romântica colegial dominante nos anos 90 e ainda é utilizada em revival até hoje no gênero. De cara, o que mais chama a atenção na estética do cineasta é o jogo de estereótipos trabalhados em seu universo por meio de uma troca de desejos idealizados. Hughes acredita muito no sonho jovial e é isso que o conecta tão fortemente com o público jovem em qualquer época, porque ele irá normatizar certos grupos com características sociais estereotipadas e fará de alguma forma uma narrativa que gira em torno desses jovens sonhando em trocar seu papel social, ou no mínimo, desejar um outro que não os pertence.

No caso, Gatinhas e Gatões leva esse exercício quase ao pé da letra, em um quadrângulo amoroso motivado pura e exclusivamente por essa idealização de corpos que não os representa. Pode-se dizer que a narrativa do filme não contém exatamente uma trama, e a intenção de Hughes não é tê-la de fato, a construção do universo está toda respaldada em esquetes que vão brincar com a percepção do espaço, transformar aquele ambiente colegial em um sonho, onde a porta, na cabeça dos personagens, tem na chave o outro estereótipo por eles. Nesse sentido, Hughes é mestre, a atmosfera respira essa cafonice idealizadora e se torna muito fácil de se envolver, especialmente se você é jovem. Porque o diretor sabe que no fundo todo jovem passa pelos mesmos anseios de identidade, principalmente movimentado pela ideia de a idade passar e não saber se irá conseguir aproveitar ou não aquele momento que é para ser único, porque o diretor sabe que é.

Tanto que a dramática da protagonista, em termos substanciais, passa diretamente por isso. Samantha (Molly Ringwald) não é lembrada no dia do seu aniversário de 16 anos, a típica idade mensurada como a flor da juventude. Sua família esquece porque está preocupada com o casamento de sua irmã, que de alguma forma representa o fim desse universo de descompromisso idealizado, e quando se é adulto, já não há mais importância. Para Hughes, esse esquecimento da orientação adulta na adolescência alimenta a frustração perante o sonho de viver a adolescência. Um drama “besta”, mas que se torna válido na medida em que se reflete na idade ao assumir o compromisso, como mostra tangencialmente a resolução dos eventos do casamento. Tudo isso é estudado pelo diretor com o mesmo humor em todo o filme, o que parece diminuir sua efetividade substancial, especialmente num contexto em que, infelizmente, a normatização do estereótipo traz consigo um discurso machista e sexista que não é levado pelo olhar crítico.

Gatinhas e Gatões envelheceu pessimamente mal por oferecer caminhos não naturais na trama para o encontro de seus estereótipos. Temos aqui um quadrângulo entre o galã (Michael Schoeffling), a tímida (Molly Ringwald), o nerd (Anthony Michael Hall) e a patricinha (Haviland Morris). A tímida, protagonista, deseja o galã, o nerd deseja a tímida. O galã tem a patricinha, mas não a quer mais, a patricinha é escanteada pelo galã, que a oferece para o nerd como um conforto para ele sair de seu estereótipo, automaticamente levando a patricinha a sair do seu. O galã, portanto, irá sair do seu quando conseguir a tímida, que por sua vez, ao conseguir o galã, não será mais tímida. Percebam que meu uso de adjetivos remete a uma objetificação dos personagens porque de fato eles são, todos são, faz parte da identidade do filme, o grande problema é o tratamento dessa objetificação nos gêneros.

SPOILERS!

“Eu posso ficar com outras quando quiser, e cansei disso. Por isso Samantha é diferente, ela não parece me querer.”

“Caroline está lá no quarto desmaiada. Poderia violá-la de dez formas diferentes, se quisesse.”

“Vamos fazer um trato. Vou deixá-lo levar Caroline para casa e ficar com ela. Ela está tão bêbada que nem vai perceber.”

As linhas de diálogos que separei falam por si só, mas a gravidade das falas se estende quando o filme não abandona sua atmosfera oitentista “cool” na hora de destacá-las. A cultura do estupro, portanto, é normatizada quando o galã só deseja Samantha porque ela é “pura”, “virgem”, e não corre atrás dele como tantas outras mulheres, destacadas pelo próprio personagem como descartáveis, tais como a própria namorada (patricinha) que ele nem considera como tal, tanto que a entrega bêbada para que o nerd possa abusar dela, implicitamente. O nerd, inclusive, momentos antes, tenta conquistar Samantha beijando-a à força, e quando não consegue, suborna a personagem em ajudá-la a conseguir falar com o galã em troca de sua parte de baixo que ele precisa mostrar para o seu grupo social o achar o máximo, um macho alfa. Quando está com a patricinha, a mesma coisa, ele precisa tirar foto com a personagem no carro para provar que a conseguiu, independentemente dos meios.

“Eu não lembro direito, mas eu sinto que gostei.”

Soa mais incômodo quando depois do abuso a patricinha diz que gosta. A ideia de ela dizer que gosta é porque teoricamente seu estereótipo foi invertido com isso, afinal, pessoas como ela não ficam com nerds ou terminam com seus galãs, mas a personagem diante do roteiro é tratada com total passividade, sem desenvolvimento, ou seja, sua objetificação é praticamente confirmada quando ela agradece o galã por ter sido abusada e traída por ele. Enquanto isso, Samantha e o galã basicamente não trocam uma linha de diálogo, mas o filme quer vendê-los como o casal perfeito ao final da última e lúdica cena. Na teoria, esse fechamento também traz a confirmação da inversão do estereótipo, além da realização do sonho que o filme vende, mas pelo histórico, o custo desse sonho normatiza (e normatizou) essa cultura da objetificação e passividade da mulher pelas figuras masculinas para o resto da vida, afinal, o próprio filme vende a importância dessa idade como um divisor de águas.

Por mais que exista um valor temático quando a figura do pai (Paul Dooley), normalmente grande influente na construção dessa imagem de pureza feminina, dialoga e orienta Samantha a não se frustrar com a não realização do sonho de estar com o galã, e que os valores da vida podem estar em outros lugares, meio que a libertando disso, não há potencia o suficiente para subverter a disseminação de preconceitos que estão no foco do filme. Pois até em elementos que não são o foco, existe preconceito, como as piadas extremamente xenofóbicas com o intercambista chinês da casa de Samantha que soam tão incômodas quanto a resolução da trama principal com os romances.

FIM DOS SPOILERS!

Diante dessas condolências, é impossível assistir a Gatinhas e Gatões hoje e não se sentir incomodado em algum momento com essa normatização de preconceitos, que já à época não eram mais cabíveis. É possível sim, também, ainda se divertir com o filme pela sua rica atmosfera e valores que seriam ainda mais potencializados no decorrer da filmografia de Hughes, que traria também outras questões progressistas. Não é um filme que deva ser cancelado, bem como o seu autor, é um produto de sua época, um produto problemático desde a sua época. E que com os olhares de hoje, pode ser visto e apreciado da forma crítica a que Hughes não se dispôs a ter, mas teve depois em algum momento da carreira, tanto que sua linguagem se tornou influente não só pela atmosfera, mas por também buscar compreender a mentalidade adolescente e os processos de amadurecimento.

Gatinhas e Gatões (Sixteen Candles | EUA, 1984)
Direção: John Hughes
Roteiro: John Hughes
Elenco: Molly Ringwald, Justin Henry, Michael Schoeffling, Haviland Morris, Gedde Watanabe, Anthony Michael Hall, Paul Dooley, Carlin Glynn, Blanche Baker, Edward Andrews
Duração: 93 minutos

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