- Há spoilers. Leiam, aqui, as críticas dos demais episódios e séries do universo e, aqui, dos quadrinhos.
Intercalar The Boys com Gen V é uma solução boa para ao mesmo tempo manter a independência das séries e fazê-las conversar entre si. O final do primeiro ano de Gen V levou ao decepcionante quarto ano de The Boys que, por sua vez, devolveu a bola para a segunda temporada de Gen V. No entanto, entre uma coisa e outra, uma tragédia, pois o jovem Chance Perdomo, que viveu Andre Anderson, faleceu em um acidente de motocicleta, e a produção decidiu não escalar um novo ator para o personagem, inserindo sua morte na narrativa. Apesar de eu costumeiramente defender que reescalar é a melhor saída, devo reconhecer logo de início que os roteiros da trinca inicial de episódios souberam lidar com isso de maneira exemplar, não só matando Andre fora da tela, como também transformando sua morte em uma das forças motrizes desse começo, algo raro de se ver por aí.
Isso não quer dizer, porém, que tudo funcionou às mil maravilhas. O episódio 2X01 – Novo Ano, Nova Faculdade -, no lugar de apostar no cliffhanger da primeira temporada e mergulhar em suas consequências, faz algo muito estranho, ou seja, uma elipse temporal que avança algo como um ano em que os eventos em Elmira são contados por aqueles que sobreviveram, sem nem um mísero flashback. Muito provavelmente essa escolha se deu em razão da morte de Perdomo, mas, mesmo assim, o que temos é o que o audiovisual deve sempre procurar evitar, o “fala, mas não mostra” que rouba da mídia aquilo que ela tem de mais poderoso. Mesmo com o pulo temporal, se ela era realmente inevitável, havia maneiras de se trabalhar o que aconteceu por lá sem que fosse essencial mostrar o personagem de Perdomo. Afinal, não é pouco o que aconteceu por lá. Não só há a morte de Andre, como a fuga de Marie Moreau para tentar achar sua irmã, o que compreensivelmente deixou seus amigos estupefatos. E isso sem contar com a escalação de Cate e Sam para a “causa” de Homelander e companhia, conforme vimos na quarta temporada de The Boys.
O que o tumultuado primeiro episódio faz é criar todas as circunstâncias para que o status quo ante retorne, um artifício cansado de séries antigas de TV em que cliffhangers não eram mais do que promessas de mudança que nunca se concretizavam, já que tudo era resolvido em questão de minutos no primeiro episódio da temporada seguinte. Porque é mais ou menos isso que acontece nesse início do segundo ano de Gen V: todo o esforço é feito para “rebobinar” a história e primeiro reinserir Emma e Jordan na Universidade Godolkin, algo que é feito com um literal estalar de dedos, com direito à recepção de uma super que é uma abelha(???) e uma tábula rasa que lhes permite pisar no lugar triunfalmente, como os Guardiões de Godolkin ao lado de Cate e Sam. Em seguida, é a vez de Marie que, mesmo foragida, não demora a reaparecer quando salva um grupo pró-Starlite de valentões pró-Homelander e acaba convencida pela própria Annie de que o melhor lugar para ela voltar para a faculdade, seja para sua proteção, seja para investigar um projeto chamado Odessa que parece ser a razão pela qual o Dr. Thomas Godolkin (Ethan Slater) fundou a faculdade. Entre atritos entre Annie de um lado e Emma e Jordan de outro, tudo vai amoldando-se e retornando ao que era antes.
O episódio 2X02, A Justiça Nunca Esquece, é um passo a frente nisso, com um retorno à normalidade completa já pela sua metade. Ainda bem que é um retorno relativo, ou seja, os esforços se limitaram a reunir o grupo mais uma vez – pelo menos a trinca principal, já que Sam vinha sendo manipulado por Cate que quase morre em confronto com Jordan em um bom momento do primeiro episódio – e a criar um novo mistério ao redor do tal projeto Odessa, mistério esse que não demora a ser revelado ou, pelo menos, a ter uma direção de resolução bem claramente indicada, já que Emma, com a ajuda de Polarity, que os está ajudando em memória ao seu filho, descobre que Marie parece ser o foco desse mistério depois que eles entram em um cofre que deixa mais do que clara a conexão nazista de Godolkin e, por via de consequência, a Vought. Essa é uma vantagem do segundo episódio e, pelo visto, da temporada como um todo, pois, mesmo com o retorno ao que era antes, parece existir uma vontade genuína de seguir adiante sem muita enrolação. E, nessa mesma toada, H É de Humano fecha a trinca de episódios ao revelar mais sobre o passado de Marie e de conectá-la diretamente com Cipher, personagem vivido por Hamish Linklater como o misterioso novo reitor da faculdade.
Mas o melhor desse reinício é constatar que Gen V se recusa a abandonar as linhas narrativas dos problemas adolescentes. O trauma de Sam se faz presente, com o jovem tendo se viciado no “tratamento de esquecimento” ministrado por Cate a ponto de desesperar-se quando ela diz que não pode mais usar os poderes, da mesma forma que a vida bulímica de Emma ganha ótimo destaque, mas com a jovem demonstrando força para compreender e controlar o que sente. Há espaço até mesmo para que o poder de Marie, que funciona melhor quando ela se autoflagela, é desafiado pelo próprio Cipher. É corajoso ver uma série com o apelo de Gen V mergulhar tão de peito aberto nessa seara e, mais ainda, sabendo como navegar essas águas turbulentas.
Por outro lado, como Eric Kripke demonstrou na quarta temporada de The Boys, ele parece ter perdido toda e qualquer confiança na capacidade de seu público espectador de entender as mensagens que ele quer passar. Toda a radicalização fascista que a série sempre trabalhou e fortemente criticou perde as entrelinhas, perde todo e qualquer resquício de sutileza, passando a ser algo explícito, escrito em letras garrafais a todo momento e repetido sempre que possível. Diante do cenário mundial, eu entendo a posição do showrunner, mas a retirada completa do véu empobrece a arte e é uma pena que as circunstâncias o tenha feito recorrer à transmissão de mensagens bem explicadinhas, nos seus mííííííííínimos detalhes, mensagens essas que mesmo assim encontrarão ouvidos moucos que teimarão em dizer que não é isso que ele quis dizer. No entanto, apesar de retroceder um pouco na promessa feita pelo cliffhanger e de sucumbir às obviedades críticas, o segundo ano de Gen V começa bem melhor do que eu imaginaria que começaria, ajudando a tirar aquele gosto amargo que a mais recente temporada de The Boys deixou.
Gen V – 2X01 a 03: Novo Ano, Nova Faculdade / A Justiça Nunca Esquece / H É de Humano (Gen V – 2X01/02/03: New Year, New U / Justice Never Forgets / H Is for Human – EUA, 17 de setembro de 2023)
Desenvolvimento: Craig Rosenberg, Evan Goldberg, Eric Kripke
Direção: Steve Boyum (2X01 e 2X02), Karen Gaviola (2X03)
Roteiro: Ellie Monahan (2X01); Jessica Chou (2X02); Cameron Squires (2X03)
Elenco: Jaz Sinclair, Lizze Broadway, Maddie Phillips, London Thor, Derek Luh, Asa Germann, Sean Patrick Thomas, Hamish Linklater, Julia Knope, Ethan Slater, Erin Moriarty, Valorie Curry, Chace Crawford
Duração: 50 min. (2X01), 45 min. (2X02), 55 min. (2X03)
