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Crítica | Geografias da Solidão

Da atemporalidade das imagens poéticas à temporalidade das imagens urgentes, a rotina de duas mulheres na Ilha Sable.

por Michel Gutwilen
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Um cavalo vive na Ilha Sable. Quando morre, naturalmente, seu cadáver gera nutrientes para o solo, permitindo que cresça uma vegetação naquele perímetro. Paralelamente, um potro que também vive na ilha vai naquele lugar e se alimenta daquela grama. Esta ideia de reciclagem natural enquanto parte do ciclo da vida está presente por toda a dimensão de Geografias da Solidão, que encara a ideia de morte e vida dentro de uma coexistência harmônica e pacífica. Talvez eu que esteja vendo coisas, mas não pode ser mera coincidência que, quando a diretora Jacquelyn Mills decide mostrar um cavalo morto em uma vegetação, ela busque uma imagem que faz com que seus cabelos e pelos se confundam com os próprios fios da natureza, a ponto do olhar confundir essas duas matérias diferentes como uma única só, como em um estado simbiose. 

Por outro lado, a ausência de reciclagem — aqui encarada por um outro sentido, material — desemboca em um processo que também é tratado em Geografias da Solidão. O acúmulo de plásticos nos oceanos, que chegam dos mais diversos continentes,  sem o devido tratamento ecológico chega até a Ilha Sable, interrompendo o ciclo de vida natural ao causar a morte de animais que existem naquele ecossistema, gerando uma desarmonia.  

É a partir desta dualidade que se desenvolve este filme canadense, que possui como força centrípeta a naturalista Zoe Lucas, que vive há décadas isolada na ilha, pesquisando e catalogando sua existência animal. Nos últimos anos, como consequência do capitalismo consumista, isso implicou que ela também passaria a lidar com um assunto mais urgente, que é a entrada de material não-orgânico na região e suas consequências. Portanto, lado-a-lado coexistem dois interesses em Geografias da Solidão. Por um deles, há o filme poético, em que a diretora Mills se encanta com a natureza e a vida animal das Ilhas Sable, sem qualquer senso de urgência ou temática em suas imagens, estando apenas preocupada em conseguir capturar, na hora certa, os milagres do cotidiano em sua câmera. Já no outro polo, há também o filme político, que se localiza temporalmente e é aliado de um discurso, que usa das imagens registradas para serem reverberadas como documento do que vem acontecendo no mundo em termos de poluição. 

Apesar de ser um filme que captura todo o cotidiano daquela vida por uma posição de encanto, Mills não é totalmente uma cineasta tão livre e experimental, sem amarras narrativas, como se estivesse fazendo um novo Nostos: Il ritorno (um dos maiores filmes já feitos sobre a relação do homem com a natureza, ausente de linguagem). Na verdade, por boa parte do tempo, suas imagens são mediadas pela relação da naturalista Zoe Lucas com aquele universo. Quando não é a própria pesquisadora sendo enquadrada em cena junto com o seu ecossistema, Mills coloca sua voz em off servindo como guia daquelas imagens, por meio de falas que ora caem em um papo mais humanista mas também possuem a rigidez formal de uma pesquisadora. Portanto, há um certo atrelamento ao cientificismo que perpassa o filme, até porque este é objeto de estudo da diretora, que não vai para um lugar isolado capturar sua paisagem, mas sim entender como é a relação de uma pessoa que vive isolada nele — em movimento parecido com O Homem Urso, de Werner Herzog, e O Leopardo das Neves, de Marie Amiguet, ainda que nesses documentários os cineastas sejam mais cínicos diante dos seus protagonistas, enquanto Mills é mais uma “mimetizadora” do próprio modo como Zoe Lucas enxerga aquele mundo. 

No entanto, isso não significa que o documentário seja racional e ausente de emotividade, pelo contrário. Em um primeiro momento, por exemplo, até podem soar massantes as cenas em que somos obrigados a ver o projeto de catalogação de Zoe em uma planilha com mais de 100 fileiras de dados. Contudo, quando a câmera de Mills se volta para a tela de um computador, enfatizando a burocracia do processo e também a própria frieza que envolve a transformação do empirismo em números, cria-se uma ideia de contraste com as imagens propriamente da vida em si, levando à conclusão de que a tradução verdadeira de toda aquela experiência é impossível. Em certa passagem, inclusive, Zoe revela que o motivo de sua vinda para a Ilha Sable teria sido a possibilidade de poder ver com seus próprios olhos a natureza. É justamente este movimento que o filme reproduz, ao permitir que o espectador veja em película que os números jamais dariam conta. As belezas da vida e suas tragédias, que antes eram confidenciados a uma só pessoa, se tornam uma experiência coletiva, o que abrange tanto a frontalização de um momento íntimo de uma morsa¹ dando luz à um filhote, quanto também as imagens mais urgentes de lixo sendo acumulado.  

Na verdade, em Geografias da Solidão, Jacquelyn Mills consegue conciliar uma ideia própria de simbiose entre o poético e o científico, em que se usa imagens poéticas para fazer apontamentos científicos, assim como se usa da ciência para criar poesia nas imagens. Sob esse segundo aspecto, Mills se utiliza de olhares microscópicos sob pequenos animais (um besouro; um caracol) e uma tecnologia que permite criar uma trilha sonora a partir dos eletrodos de seus movimentos. Quando se escuta aquela música, feita pela própria natureza, não resta dúvidas de que a arte e a ciência andam lado a lado. Já quando Mills usa de imagens do próprio filme em 35mm, enquanto objeto físico e com textura, para colar os balões de plástico nele, a parte política e científica do documentário se manifesta visceralmente e poeticamente nas próprias imagens. 

¹- Sou péssimo em identificar fisicamente diferentes tipos de animais, então assumo o risco da imprecisão de que talvez não seja uma morsa.

Geografias da Solidão (Geographies of Solitude, 2022) — Canadá
Direção: Jacquelyn Mills
Roteiro: –
Elenco: Zoe Lucas
Duração: 103 mins

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