Crítica | Gigi

por Ritter Fan
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Gigi é considerado como o último grande musical da MGM e, em 1959, varreu a cerimônia do Oscar, levando todas as nove estatuetas a que concorreu, inclusive as de Melhor Filme e Direção, um recorde da época. E, de fato, se fizermos uma ginástica mental, é realmente possível enxergar todas essas qualidades da produção do lendário Arthur Freed, inspirado de longe em obra da autora francesa Colette que, por sua vez, criou sua própria versão de Pigmaleão.

Que ginástica é essa? – alguns perguntarão.

Bem, imaginem vocês um filme cuja história abordasse o treinamento de uma menina de 15 ou 16 anos como prostituta, que acaba entregue aos desejos de um milionário solteirão mulherengo. Imaginem vocês que, diferente de filmes como Menina Bonita, de 1978, essa história não fosse contada sob um ponto de vista crítico, mas sim, muito ao contrário, de maneira alegre, como se fosse a coisa mais normal do mundo e sem um pingo de tentativa de trazer alguma lição que não seja aquilo que vemos na superfície da obra. E mais: há o bônus de um senhor solteirão, tio do solteirão principal, que inicia o filme cantando uma música intitulada Thank Heaven for Little Girls (Graças aos Céus por Garotinhas, em tradução livre) em que abertamente cobiça jovens meninas de oito ou 10 anos, um literal “Hino à Pedofilia”.

Porque é isso que Gigi é, sem tirar nem por. Estou sendo conservador ou vendo um filme de 1958 com o olhar do século XXI? Tenho para mim que não, já que a prostituição de uma menina de 15 anos não me parece ser algo que se tornou moralmente condenável apenas agora, mas cada um tem a sua própria moral, não é mesmo? Espanta-me até como um filme com essa temática conseguiu ser feito em plena vigência do Código de Produção que, por exemplo, vitimou obras como A um Passo da Eternidade por muito menos.

Assim como Sinfonia de Paris, a outra obra musical dirigida por Vincente Minelli e roteirizada por Alan Jay Lerner que levou a premiação máxima da Academia, Gigi é ambientada na capital francesa onde, aparentemente, tudo pode, um mito tão estereotipado quanto errado. E, emulando a atmosfera leve e feliz de Sinfonia em Paris, Gigi trata a prostituição como uma profissão nobre que passa de geração em geração, com a personagem-título, vivida por Leslie Caron (não coincidentemente também a estrela de Sinfonia em Paris), como uma cortesã em treinamento por sua avó Madame Alvarez, ou Mamita (Hermione Gingold) e, principalmente, por sua tia-avó Alicia (Isabel Jeans). No lado masculino, vemos o sempre entediado solteirão milionário Gaston (Louis Jourdan) fugindo de sua dura vida de festas e esbórnia para visitar Mamita, ambiente em que, com Gigi ali, aparentemente encontra felicidade.

A suntuosidade da produção está em todos os detalhes. A direção de arte é magnífica com seus cenários extremamente detalhistas e com figurinos realmente de tirar o fôlego, privilegiando o contraste de cores vivas que a a fotografia em locação rica e bem iluminada de Joseph Ruttenberg captura com todo o vigor que a obra exige. A variedade de ambientes é também um triunfo, valendo especial destaque para o apartamento vermelho de Mamita e a recriação em estúdio do restaurante Maxim’s onde os ricaços vão mostrar suas novas “aquisições”. Mas o Bois de Boulogne e a região praiana de Trouville também são estrelas na obra, o que impede que o filme caia na mesmice.

Falando em mesmice, a produção mantém um ritmo frenético que é a antítese do hilário bordão – It’s a bore! – que Gaston repete a todo momento, com os números musicais sendo bem costurados em toda a história, porém sem o apelo à dança, o que de certa forma é um desperdício do talento de Leslie Caron, mas que permite uma cadência narrativa invejável. A direção de Minnelli é inteligente, com transições e elipses bem trabalhadas, além de um belo artifício narrativo em que ele “congela” as imagens no Maxim’s para destacar a entrada daqueles que são alvo de todo tipo de fofoca. Solução elegante e inusitada, que só ratifica a qualidade da produção.

No entanto, novamente, isso tudo só fica de pé com o esforço mental de separar a tenebrosa história de prostituição infantil e, sim, pedofilia, que são abordadas com normalidade, alegria e uma visão de apologia. Como crítico, contorço-me entre a beleza estética e o horror sem filtro e sem crítica do que é mostrado na tela literalmente a cada segundo e espanto-me que a obra tenha feito o sucesso que fez. E, repito, não é uma questão de interpretação ou de noção da moralidade à época, pois estamos falando de algo de relativamente poucas décadas atrás, quando a prostituição infantil no mundo já era um problema conhecido. Se um olhar lascivo a uma criança é algo condenável hoje, ele o era igualmente condenável na época. Aparentemente, porém, se a história for passada em Paris e houver um verniz musical clássico da MGM, então não há que se preocupar…

P.s. A avaliação em estrelas, acima, foi o resultado de um dilema pessoal sobre como olhar para o filme. A produção merece cinco estrelas, ao passo que a história e a forma como ela é contada não me deixa dar mais do que zero. A quantidade final, portanto, é meramente uma média, ainda que minha tendência pessoal fosse condenar o filme todo.

Gigi (Idem, EUA – 1958)
Direção: Vincente Minnelli, Charles Walters (não creditado)
Roteiro: Alan Jay Lerner (baseado em novela de Colette)
Elenco: Leslie Caron, Maurice Chevalier, Louis Jourdan, Hermione Gingold, Eva Gabor, Jacques Bergerac, Isabel Jeans, John Abbott, Marie-Hélène Arnaud
Duração: 115 min.

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