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Crítica | Ginger e Fred

por Luiz Santiago
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Não é segredo para ninguém a relação de amor e ódio que Federico Fellini tinha com a televisão. Se por um lado ele admirava o dinamismo e toda a estrutura de produção e apelo da pequena tela, por outro, a odiava, porque ela moldava um público preguiçoso. E isso evidentemente trazia reflexos negativos para o cinema — e o próprio Fellini sentiu na pele o impacto da TV sobre seu público e a recepção a seus filmes, especialmente na Itália. Duas obras localizadas na fase final da carreira do cineasta trazem, de maneira crítica e inquietante, o papel da televisão na sociedade e na arte.

A primeira dessas obras, Ginger e Fred (1983), trabalha um ponto humano e nostálgico do diretor e da própria sociedade italiana em relação à telinha, tendo um desfile de personalidades do passado em um programa de auditório, durante o Natal. Mais adiante falaremos de outras características exploradas pelo diretor nesta película.

A segunda obra é Entrevista (1987), onde o próprio Fellini se põe como objeto de análise para um documentário televisivo (algo totalmente diferente do que ele fizera em Anotações de um Diretor ou mesmo Os Palhaços), e também onde ele visita lugares que foram marcantes para o seu desenvolvimento artístico, relembrando eventos de sua vida pessoal ligados ao cinema.

O encontro do cinema com a televisão é a medula de Entrevista, enquanto a televisão e o seu impacto na sociedade é o tema central deste Ginger e Fred — isso sem contar a homenagem aos atores Ginger Rogers e Fred Astaire e ao próprio gênero musical, tão querido pelo diretor e explorado mais abertamente em filmes como Ensaio de Orquestra, E La Nave Va e no próprio Ginger e Fred.

Aqui temos como ponto de partida o reencontro de dois artistas que dividiram o palco e foram amantes no passado, um enredo que, convenhamos, é pouco atrativo na maior parte de seu desenvolvimento. Existem momentos hilários, cenas em que destaca-se a crítica à TV e ao embasbacamento social em relação a ela, mas a estrutura do programa de auditório, a apresentação das personalidades esquecidas e a maior parte dos diálogos entre os protagonistas chegam a chatear um pouco o espectador. Fellini, no entanto, consegue fazer mágica e a reta final da obra é a prova disso. A antipatia criada em torno de Fred, as revelações e as conversas sobre o passado, o presente e o futuro mudam a nossa percepção geral da obra. Tudo faz sentido e termina de uma maneira terna, um contraponto reflexivo entre a vida e a arte.

A estética televisiva, assim como em Entrevista, é plenamente abstraída pelo diretor, que se permite também mostrar o impacto físico da TV e dos próprios anos 80 na tela: funcionários que atendem mal aos clientes do Hotel porque estão assistindo futebol; burocracia; lixo por toda a parte; luta desesperada e desmedida para se ganhar dinheiro aparecendo em qualquer programa; decadência do entretenimento de massa; banalização do sexo na arte; disseminação da violência; presença massacrante do marketing por toda a parte; multiplicação das telas por todos os lugares (e veja, isso tudo nos anos 80!).

Ginger e Fred é um filme bastante inquietante. Ele liga um passado aparentemente doce (lembremo-nos de Roma e Amarcord) a um presente repleto de obstáculos, poucas cores, predomínio das máquinas e dos favores mais bizarros para atrair público e dinheiro. Mesmo sendo um filme de 1983, permanece cada vez mais atual, basta ligarmos a televisão e nos aventurarmos a passar rapidamente pelos canais…

  • Crítica originalmente publicada em 17 de fevereiro de 2014. Revisada para republicação em 20/06/2020, como parte da versão definitiva do Especial Federico Fellini aqui no Plano Crítico.

Ginger e Fred (Itália, França, Alemanha Ocidental, 1986)
Direção: Federico Fellini
Roteiro: Federico Fellini, Tonino Guerra, Tullio Pinelli
Elenco: Giulietta Masina, Marcello Mastroianni, Franco Fabrizi, Friedrich von Ledebur, Augusto Poderosi, Martin Maria Blau, Jacques Henri Lartigue, Totò Mignone, Ezio Marano.
Duração: 125 min.

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