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Crítica | Gladiador

por Gabriel Carvalho
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“Meu nome é Máximo Décimo Merídio, comandante dos exércitos do norte, general das Legiões Félix… servo leal do verdadeiro Imperador, Marcus Aurelius. Pai de um filho assassinado, marido de uma esposa assassinada. E terei minha vingança, nesta vida ou na próxima.”

Contém spoilers.

Gladiador é uma das obras mais comentadas sobre a temática que o envolve, com o objetivo ambicioso de ser, como o título sugere, o definitivo represente de um era romana, perdida com o tempo, mas mantida nas literaturas e no cinema. A narrativa inspira-se na história verídica, com grandes – e problemáticas – divergências: o general Máximo (Russell Crowe) lidera seu exército contra invasores bárbaros, enquanto Cômodo (Joaquin Phoenix), filho do César, anseia enormemente o trono, tendo em vista que seu pai, muito velho, já enxerga um próprio fim para si. As divergências ocorrem quando Marco Aurélio (Richard Harris) opta por Máximo como seu sucessor, causando uma ira entristecida no jovem Cômodo, angustiadíssimo com a decisão, em sua ânsia por poder. A obra nos aproxima dessa resolução em âmbito emocional, porque, durante uma conversa extremamente franca, melancólica, Marco Aurélio lamenta não ter sido um pai melhor ao garoto e, portanto, não ter dado origem a um sucessor suficiente para o seu precioso reino. O que acontece a seguir, dando parênteses à ótima performance de Richard Harris, para começo da fita, é o assassinato de Marco pelo seu próprio filho, que, possesso de ciúmes, ainda ordena o fim de Máximo e de sua família. As injustiças movidas pelos mais recorrentes sentimentos humanos extraídos para as artes narrativas.

O escravo, tomado pela impotência de ter deixado sua família morrer, a tristeza de não ter mais ninguém a recorrer, além da fúria destinada àqueles que ousaram cometer grande traição a ele, começa a treinar como gladiador, após ter sido vendido para Próximo (Oliver Reed). Criando vínculos com outro guerreiros, a jornada em questão ganha nova vida quando o personagem é encorajado pelo seu próprio treinador a participar dos novos jogos de gladiadores que ocorrerão no Coliseu. O pão e circo romano é bem delineado pelo roteiro, colocando Cômodo em um impasse político, tendo que conseguir apoio populacional através da ignorância, concedida sem problemas a um povo alienado. O gladiador, investido no sentimento de vingança, consegue vitórias expressivas na arena, até mesmo se revelando para Cômodo, em uma cena épica, talvez já passível da designação de clássica. No entanto, sem poder matá-lo, pois tal ato tornaria o homem um mártir, Cômodo começa a articular – em meio a crises de loucura, pontuadas pela sua relação incestuosa com Lucila (Connie Nielsen) – a quebra de descrença do povo sobre o gladiador, que, ao mesmo tempo, encontra, nas figuras de Cícero (Tommy Flanagan) e Graco (Derek Jacobi), aliados na missão de fazer o reinado ilegítimo de Cômodo cair, instaurando-se, como Marco Aurélio quisera, uma Roma Republicana.

A obra é épica, definitivamente, mas inconsistências históricas – não, necessariamente, deméritos – são vastas, mesmo podendo ser uma ostensiva problemática para o espectador questionante de veracidade. O roteiro brinca com diversos acontecimentos reais, entrelaçando-os de uma maneira pouco fidedigna, porque, por exemplo, além de Máximo ser um personagem fictício, Marco Aurélio nunca baniu realmente os jogos de gladiadores em Roma. A questão, porém, mostra-se grave, definitivamente, por quebrar a caracterização do personagem, que, no filme, é clamado de sábio por Próximo devido a tal importante feito – na realidade, inexistente. O curioso é que, assim como acontece com Cômodo no filme, o verdadeiro também fora assassinado por um escravo; este, no entanto, de nome Narciso, e não dentro do Coliseu, mas dentro de um ambiente muito menos honroso: no banho. O contraste seria significativo, pela nobreza perecer em cenário de extrema fragilidade. Outras diversas liberdades poéticas são tomadas pelos roteiristas, como, para mais exemplos, a morte de Cômodo resultar no retorno da Roma Republicana, além dessa mudança de regime ser um antigo desejo de Marco Aurélio, novamente ficticiosamente mitificado pela indústria cinematográfica em questão. Os heróis não existem. Gladiador é simplificado.

A análise da obra, mediante o entendimento da realidade do Império Romano – completamente destoante da apresentada -, prossegue-se em seu aspecto interpretativo, muito mais significante para uma apreciação artística sem barreiras com a realidade. Diante da perda de sua família, em momento arrasador,  poucos atores conseguem se comprometer com o pesar necessário como Russel Crowe consegue, tendo em vista a sutileza dos planos de Ridley Scott, em um trabalho interessantíssimo. A imponência e carisma do ator são cruciais na crença do público em uma possibilidade de vitória, na capacidade de sua vingança. A revelação da sua persistência vívida à Cômodo, em cena já comentada, é deveras gratificante, com seu discurso sendo digno de salvas de palmas calorosas. Já Joaquin Phoenix é menos hábil no papel designado, porque, apesar de conseguir transmitir uma execrabilidade imperdoável nas suas chances em tela – um vilão vilanesco que acreditamos ser realmente maligno -, o ator não promove momentos capazes de trazerem, interpretativamente, um César nefasto e insano como o próprio roteiro – e a história – sugerem. Um elenco interessantíssimo para um longa-metragem, porém, consideravelmente aquém de sua capacidade em ser, como Ridley Scott almejara, a obra definitiva sobre os gladiadores. Uma magnitude desencontrada.

A atmosfera, ademais, sofre pontualmente, porém conserta-se para possibilitar uma experiência imersiva. A computação gráfica utilizada na ambientação de Roma, em certos momentos, pode ser prejudicada na contraposição com os elementos verídicos das filmagens. Ridley Scott, querendo a pompa extrema de obras que, há tempo, estavam quase esquecidas, recorre ao ineditismo para ser um representante máximo do que é, por outro lado, clássico. Os cenários, ao invés de construções imensas e grandiosas, são fabricados pela tecnologia. Na criação dos tigres digitais, todavia, a computação se mostra mais eficiente e propositada, estando ultrapassada pela passagem do tempo, mas suficientemente crível para a enxergamos com deslumbre. A trilha sonora de Hans Zimmer e Lisa Gerrard, acima de tudo, é um espetáculo à parte, garantindo ainda mais grandiosidade às sequências de ação. O combate de abertura, em contrapartida, apesar de ser guiada epicamente, demonstra uma fragilidade de Ridley Scott em posicionar o espectador plenamente consciente no meio do cenário de guerra. A presunção da intencionalidade do diretor, como uma das justificativas para tal desordem para o público, ainda não redime a sequência por completo, soando-se como uma recriação exagerada de uma confusão premeditada.

O roteiro não consegue salvar a ótima presença de Próximo, em decorrência do infortúnio falecimento do ator Oliver Reed, durante as gravações. O encerramento de seu arco soa apressado, definitivamente sendo, visto que ainda faltavam cenas com o ator a serem gravadas. O roteiro não se desdobra para garantir uma presença para além das problemáticas, um desafio a mais. Independente das causas de seu falecimento, o ator, ainda assim, consegue imprimir uma segurança acessível, mesmo que, nas condições de senhor de escravos, seja difícil por um intérprete tornar seu personagem relacionável ao público – o que ele consegue, surpreendentemente. Já o parceiro leal de Russel Crowe nas arenas, Juba (Djimon Hounsou), tem seu triste background exposto de modo demasiadamente simples, pobre em meios narrativos mais grandiosos, justamente o que Gladiador quer, desesperadamente, ser. Pompeia reproduz uma amizade entre gladiadores muito mais crível, com química ainda maior do que o conjunto romântico. A conclusão dada ao seu personagem, em uma oposição dos desejos que ele tem, também do que ele acredita ser seu futuro, com as metas perseguidas e a jornada trilhada por Máximo, ao menos, conforma-se como um diálogo entre uma trajetória e outra – uma felicidade derradeira. O roteiro é simplificado demais para a ansiosa magnitude.

A poesia, em outra instância, é principal para Scott. O longa abre com uma belíssima cena, em que o protagonista encontra-se rodeado por uma imensidão de flores – suas mãos deslizam por entre elas. A cinematografia contempla uma narrativa que encontra seu fechamento em uma alusão ao mesmo plano de abertura. Os jardins da eternidade surgem no arenoso cenário, enquanto um moribundo Máximo despede-se de Roma e do espectador. A pieguice pode ser uma interpretação deste novo cenário, com o general reencontrando, em um novo plano, sua família, contudo, remetendo à dor de outrora, percebemos uma necessária beleza confortante sendo exercida sobre nossos olhares – o sofrimento termina. O maior problema de Gladiador, enfim, resume-se em transformar eventos históricos em pano de fundo para a criação de um produto de plenas intenções comerciais, dessa grandiosidade exacerbada. A direção de Ridley Scott não é extraordinária, porém, por outro lado, sua condução contribui para a exaltação de um elenco propositado. O roteiro não se equivoca tanto, dando margem a uma história redonda e nenhum pouco esquecível – a amálgama desejada. Gladiador pode ter poucos cuidados baseados nos livros de história, mas funciona na medida certa como impressão ficcional de um tempo que nunca existiu – pelo menos não dessa maneira.

Gladiador (Gladiator, EUA – 2000)
Direção: Ridley Scott
Roteiro: David Franzoni, John Logan, William Nicholson
Elenco: Russell Crowe, Joaquin Phoenix, Connie Nielsen, Oliver Reed, Derek Jacobi, Djimon Hounsou, Richard Harris, David Schofield, John Shrapnel, Tomas Arana, Ralf Möller, Spencer Treat Clark, David Hemmings, Tommy Flanagan, Swen-Ole Thorsen
Duração: 171 min.

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