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Crítica | Guerra dos Mascates, de José de Alencar

Uma abordagem ficcional de um dos mais emblemáticos conflitos do Brasil Colonial.

por Leonardo Campos
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A literatura tem a capacidade ímpar de transformar a realidade em arte, particularmente através do gênero do romance histórico. Este tipo de narrativa é caracterizado pelo entrelaçamento de eventos reais e a criação de personagens e tramas fictícias, permitindo que os escritores ofereçam uma nova perspectiva sobre o passado. A fusão entre realidade e ficção não apenas enriquece a narrativa, mas também proporciona uma forma de refletir sobre questões contemporâneas a partir do prisma histórico. Um dos principais atrativos do romance histórico é a sua habilidade de trazer à tona períodos e figuras que, embora reais, podem estar relegados a uma memória coletiva ou a uma visão distorcida. Autores como José de Alencar, no bojo da literatura brasileira, foram mestres na arte desse tipo de composição literária. Por meio de algumas publicações de sua jornada voltadas ao gênero em questão, percebemos que o romance histórico frequentemente explora temas que ressoam no presente, convidando os leitores a refletirem sobre questões como poder, moralidade e identidade. Uma de suas obras menos conhecidas, Guerra dos Mascates, trabalha demasiadamente tais pontos, parte integrante do seu audacioso projeto de formação de uma identidade nacional mais coesa diante dos eventos que ocorriam ao longo do turbulento século XIX no Brasil.

Um aspecto fascinante da ficcionalização em romances históricos é a maneira como os autores utilizam a licença poética para preencher as lacunas da história. Eventos históricos são frequentemente envoltos em mistérios e incertezas, e é nesse espaço que a criatividade literária pode florescer. O escritor pode criar diálogos, emoções e cenários que, embora não verificados, são plausíveis à luz do contexto histórico. No entanto, a abordagem de ficcionalizar o passado também levanta questões éticas. A liberdade criativa pode levar a uma simplificação excessiva ou a uma romantização excessiva dos eventos, resultando em uma distorção da “verdade” histórica. Importante, no entanto, entender que os romances históricos não servem apenas para entreter, mas também desempenham um papel educacional e reflexivo. Ao conduzir os leitores através de eventos históricos, os autores podem despertar o interesse por períodos que talvez não fossem explorados em livros didáticos. Isso reforça a importância de se engajar com a história de maneira crítica e emocional. A imersão em narrativas que podem provocar empatia e conectar o leitor a tempos e culturas distintas é fundamental para uma compreensão mais profunda da humanidade.

Entender o romance requer compreender também do que se tratou esse conflito, conforme os relatos delineados nos livros didáticos de História do Brasil. Em linhas gerais, caro leitor, a Guerra dos Mascates foi um significativo sacolejo nas estruturas da história do Brasil colonial, demarcada entre 1710 e 1711, na capitania de Pernambuco. Esse conflito emergiu em um contexto de rivalidade entre os senhores de engenho de Olinda e os comerciantes estabelecidos em Recife. A economia da capitania girava em torno da produção de açúcar e as tensões sociais e econômicas entre os grupos de poder provocavam contatos de muita intensidade. Os senhores de engenho, tradicionais e influentes, viam os comerciantes, chamados de “mascates”, como uma ameaça ao seu status e poder. As causas da guerra incluíam ressentimentos acumulados entre os olindenses e os recifenses. Os comerciantes de Recife buscavam maior autonomia política e econômica, o que se tornava difícil sob a hegemonia dos senhores de engenho. A disputa por direitos políticos, especialmente a questão da autonomia do governo de Recife, foi um fator crucial que levou ao conflito, trabalhado numa análise documental por José de Alencar, ao transformar os acontecimentos em situações ficcionais que acompanhamos ao longo do livro.

Em 1710, as tensões culminaram no início da guerra, quando os mascates organizaram uma milícia para se defender contra as incursões dos senhores de engenho. O estopim da violência se deu quando tropas leais a Olinda atacaram a cidade de Recife, resultando em um conflito aberto que arrastou diversos grupos sociais e econômicos. As autoridades coloniais, inicialmente, não se envolveram diretamente, mas eventualmente o governo português precisou intervir para restabelecer a ordem na região. A guerra chamou a atenção da Coroa, que temia a instabilidade nas colônias e buscou controlar o conflito, enviando tropas e um governador para mediar a crise. A guerra “terminou” em 1711 com a vitória dos mascates, que conseguiram consolidar suas reivindicações políticas e econômicas. A vitória significou um passo importante para a democratização das relações sociais em Pernambuco, já que os comerciantes passaram a ter maior influência na política local, um reflexo da mudança nas dinâmicas de poder colonial. Como consequência, ocorreram mudanças significativas na estrutura social e política da capitania. A ascensão dos mascates desafiou a antiga aristocracia do açúcar e o clima político ficou mais favorável à disputa de poder entre diferentes grupos sociais.

Em A Guerra dos Mascates, publicado em 1873 por José de Alencar, o autor explora a rivalidade entre comerciantes portugueses e senhores de engenho em Pernambuco durante o período colonial. Com uma narrativa em terceira pessoa, Alencar oferece aos leitores uma visão abrangente dos conflitos sociais e históricos que permeiam a sociedade pernambucana do século XVIII. A obra destaca não apenas o contexto econômico e político da época, mas também apresenta uma crítica social embutida na trama, que é envolvente e rica em detalhes. A história se mantém centralizada no amor proibido entre Isabel, filha de um mascate, e Ricardo, herdeiro de um senhor de engenho, capturando intrigas, traições e tumultos políticos. Dentre os personagens principais, temos Isabel, tratada como bela e corajosa, e Ricardo, descrito como justo e apaixonado. Nesse cenário ainda há espaço para o Conde dos Arcos, um governador que representa os interesses portugueses, figuras que tecem uma narrativa densa que culmina em eventos surpreendentes, apesar de cansativos para a leitura das gerações mais atuais, viciadas em textos mais dinâmicos e objetivos. Além deles, temos o Capitão-mor, um influente senhor de engenho, e Dr. Manuel Caldas, amigo de Isabel, personagens que desempenham papéis significativos no enriquecimento da trama, refletindo as tensões sociais do Brasil colonial.

Dentre os romances históricos de José de Alencar, Guerra dos Mascates é o menos explorado pela crítica acadêmica, possivelmente pela sua complexa relação com a verdade histórica e o uso da sátira. O romance, que tem sua narrativa dividida em duas partes publicadas em intervalos consecutivos, destaca-se pela crítica social e política, além de refletir sobre a dinâmica da literatura em folhetins, onde o leitor tinha influência na construção da história. Alencar escreveu Til durante o intervalo da publicação, mostrando sua versatilidade ao lidar com temas diversos. Diferentemente de outros romances de Alencar, que costumam ter finais felizes, é importante destacar que esse apresenta um desfecho mais amargo, o que reflete uma utilização intensa do sarcasmo e da ironia. Essa é uma narrativa que traz à tona uma crítica social que permeia as desavenças entre os grupos sociais da época, revelando a habilidade do autor em abordar questões da realidade brasileira através do romance. O caráter intricado do texto e a sátira presente revelam uma nova faceta do Romantismo de Alencar, que desafia as expectativas do leitor e proporciona uma reflexão mais profunda sobre a sociedade de seu tempo.

Guerra dos Mascates (Brasil, 1873-1874)
Autor: José de Alencar.
Editora: Melhoramentos
Páginas: 623.

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