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Crítica | Habibi

por Luiz Santiago
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estrelas 5,0

A palavra tem poder“. Esta foi uma das premissas de Craig Thompson antes mesmo de começar a desenhar e escrever o roteiro de Habibi. E que bom que foi assim. A longa jornada de manufatura da obra ocorreu do final de 2004 e seguiu até 2011, quando o calhamaço de mais de 600 páginas com a história de dois escravos, Zam e Dodola, em um país “genericamente árabe” e cheio de referências à cultura desses povos, foi publicada.

Com elementos das Mil e Uma Noites e um amálgama da História de nações do norte da África ou Oriente Médio,  além de passagens do Corão e o entrelaçar de tramas dentro de tramas, o autor realiza a saga de duas vidas e parte do princípio de que existe um fator humano que se alia a religiões e sociedades de qualquer tempo (que em Habibi é maleável, tanto no roteiro quanto na conceitualização histórica) e que pode ser algo negativo, quando utiliza do poder para dominar, escravizar e matar; ou positivo, fazendo com que o ser amado se sinta protegido e possa confiar que existe alguém que irá olhar por ele.

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A história de Zam e Dodola é a prática desta teoria. Quando se conheceram, ele tinha três anos e ela tinha doze. Mas a história não é contada em uma sequência cronológica de tempo da vida dos dois. Existe alteração de cenas entre passado e presente (recurso que o autor também utilizou em Retalhos, 2003) e, em paralelo, os elos culturais da região deste país fictício, que acaba tornando Habibi um conto de fadas violento cuja intenção inicial, segundo o autor, era “humanizar o Islã”, intenção que alguns críticos da graphic novel não concordam que existe. O fato é que mesmo com todos os anos de pesquisa e o trabalho primoroso de construção de texto junto a um soberbo exercício artístico, há aqui um princípio de olhar Ocidental para a trama e para uma ou outra característica dos personagens, o que é algo natural e que em alguns poucos momentos na saga incomodam o leitor, embora isso não afete a nossa experiência geral.

A base de que no Islã não se deve fazer imagens de escultura ou desenhos para representar os personagens sagrados é uma das mais fortes colunas da obra, porque a vida de Zam e Dodola será guiada através da palavra, em substituição aos ícones que poderiam surgir junto a eles nesta caminhada. O primeiro marido de Dodola era escriba e a ensinou a ler e a escrever, qualidades que a colocava “à frente” das mulheres locais e que teria imenso peso na forma como a personagem encararia a vida, onde iria buscar refúgio e que significados encontraria para as tragédias diante de si. A palavra escrita e as histórias religiosas ou mitos do mundo árabe são entrelaçados em um imaginário ao mesmo tempo social e emotivo, pois um dá suporto ao outro, especialmente porque servem como migalhas em cada uma das fases ou “atos” trabalhados pelo autor nos nove capítulos da obra.

Nesse contexto, temos a decoração das páginas como um espetáculo à parte. A diagramação, as molduras, hachuras e o modelo artístico de Craig Thompson (similar ao de Will Eisner) organizam-se como um reflexo imediato desse impedimento para a representação sagrada no Islã. Daí surge o drama de dois escravos que possuem diversos tipos de relação em cada faixa etária de suas vidas. Eles são ligados aos diversos significados de palavras e o modo de escrevê-las em árabe; à relação matemática entre as letras; o “quadrado mágico” contendo os alicerces do alfabeto árabe e o conceito da Criação divina através da Palavra (algo mais ou menos parecido com o “Verbo se fez carne” do Cristianismo). Por fim, a comparação teórica e visual entre os filósofos do Ocidente e pensadores árabes que muito antes haviam modulado algo na mesma área do conhecimento. Essas comparações também são vistas no campo religioso, quando passagens do Corão são postas lado a lado com passagens da Bíblia, vide as versões do sacrifício do filho de Abraão (Ismael ou Isaque, dependendo do texto sagrado que se analisa), que no fim, é salvo por um cordeiro mostrado pelo próprio Deus ao patriarca.

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O mote religioso e a carga de simbolismos em Habibi servem para mostrar os muitos aspectos dessas pessoas que sofrem as maiores dores e castrações (simbólicas e físicas) e, mesmo assim, conservam a esperança e um algum sentimento de um plano divino. A mensagem final une o lado espiritual, emocional e social, abrindo portas para uma nova vida dos protagonistas e indicando que algumas coisas podem ser feitas de maneira diferente daquelas que que se convencionou fazê-las, isso, se as partes envolvidas entenderem o que significa (e para quê fazem) aquilo que estão fazendo.

Craig Thompson cria um universo com conflitos de todos os tipos, todos percebidos em nosso mundo. Ao longo da história, temos diversas formas de escravidão; ganho de corporações sobre o sofrimento e penúria de populações inteiras; misoginia; preconceito racial e religioso; diversidade sexual. Mas há também uma maneira poética e quase mística de representar o sexo (isso está mostrado de modo intenso no capítulo nove, Respire) e um arcabouço cultural que dá sustentação às ideias e às ações que envolvem a relação entre Zam e Dodola. Entre o sofrimento e os desafios da vida, o autor nos deixa uma reflexão sobre as coisas pelas quais teríamos coragem e força para lutar.

Pelos fortes temas retratados de maneira aberta e excelência artística do autor, Habibi é uma fábula sociopolítica e cultural de imenso valor para a história dos quadrinhos. Uma história também sobre o sofrimento mas, acima de tudo, sobre o amor.

Habibi (EUA, 2011)
Roteiro: Craig Thompson
Arte: Craig Thompson
No Brasil: Companhia das Letras (Quadrinhos na Cia), 2012
670 páginas

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