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Crítica | Hamilton (2020)

por Luiz Santiago
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Creio que seja difícil para alguém com pleno acesso às produções artísticas contemporâneas (ou às notícias sobre elas) jamais ter ouvido falar de Hamilton. Como projeto, este nome começou a fazer história em uma noite de poesia na Casa Branca, em 2009, quando o roteirista e compositor Lin-Manuel Miranda, fez a apresentação da versão rústica de Alexander Hamilton, faixa de abertura do show. Em 2013, um corte ainda em tratamento foi apresentado como workshop no Vassar Reading Festival, com o título de The Hamilton Mixtape. Por fim, a versão oficial da peça estreou Off-Broadway em 17 de fevereiro de 2015. De lá para cá, Hamilton tem sido comentada, estudada e aclamada em grande escala, apresentando-se para teatros lotados, a despeito da pequena fortuna cobrada pelo ingresso.

Em junho de 2016 foram realizadas as gravações oficiais do show, a maioria com plateia, mas também algumas cenas de ligação sem o público, material que acabou sendo negociado com a Disney, hoje detentora dos direitos de distribuição do filme, adquiridos por $75 milhões. O longa que se fez das filmagens de 2016 foi planejado para lançamento nos cinemas no final de 2021, mas a pandemia fez com que os planos fossem adiantados e a obra chegou ao público pela Disney + em 3 de julho de 2020, trazendo, dentre muitas outras discussões, uma que questiona o fato de Hamilton (2020) ser chamado de filme.

E digo “muitas outras” porque tem gente por aí inutilizando completamente o filme porque ele não fala dos índios. Porque não tem canções politicamente engajadas contra a escravidão. Porque não fala da opressão das mulheres naquela época. Porque não fala dos pobres daquela época. Porque não fala da possibilidade de homo ou bissexualidade de Hamilton, baseado nas cartas carinhosas que ele trocava com John Laurens. Porque Peggy (Jasmine Cephas Jones) não tem um número solo. Porque supostamente o rei George III (Jonathan Groff) ~está sendo retratado de forma preconceituosa ~. Porque o filme não é historicamente acurado. Bom… provavelmente estavam esperando que este musical fosse um libelo histórico-marxista de denúncia imperialista, de condenação ao racismo, classismo e genocídio arraigados à fundação dos Estados Unidos, não é mesmo? Ah, quem sabe não queriam também ressuscitar Eric Hobsbawm para escrever o roteiro e compor as letras? Eh, quem sabe também, ressuscitar István Mészáros para escrever umas três canções sobre o escopo ideológico da cultura americana contemporânea? Ih, talvez ressuscitar Zygmunt Bauman para abordar as relações entre os diferentes povos fundadores da nação americana? Oh, e que tal contratar também uma lista de sociológicos, antropólogos, historiadores (uh, seria pedir demais ressuscitar Max Horkheimer e Domenico Losurdo também?) para reescrever todas as ficções históricas do cinema, do teatro, da TV, da literatura, dos quadrinhos de toda a História da Humanidade? Olha, é cada uma, viu…

Sim, estamos falando de um legítimo teatro filmado, que teve algumas de suas apresentações dirigidas para captura da câmera, além de preparação de cenas especiais para o formato cinematográfico + edição para que se escolhesse os melhores takes dentre as cenas filmadas. O espaço desse conteúdo é diferente daquilo que estamos acostumados a ver no cinema (estúdio ou locações). Em vez disso, temos um palco. Mas a forma de captura, montagem e exibição é a cinematográfica. Isso, porém, não deveria ser mais um espanto para ninguém. A História do Cinema está cheia de exemplos de obras filmadas no palco — inteira, parcial ou similarmente, como no caso badalado de Festim Diabólico –, isso sem contar parte de diversas filmografias (como as de Oliveira, Bresson, Dreyer) que foram apelidadas de “teatro filmado“, além de obras do casal Danièlle Huillet e Jean-Marie Straub, de Jean-Pierre Ponnelle, Franco Zeffirelli e mais inúmeras filmagens de óperas feitas para a TV e o cinema que possuem a exata estrutura híbrida de Hamilton. E por último, não podemos nos esquecer do caso mais bem-sucedido dentre essas produções, a montagem da ópera A Flautá Mágica (1975), de Ingmar Bergman, que foi inteiramente filmada no teatro, para a TV, acabou ganhando lançamento cinematográfico e terminou recebendo indicação a um Oscar!

Tirado isso de cena, cabe mergulharmos nesta maravilha chamada Hamilton, uma ficção histórica inspirada pela obra de Ron Chernow e que, no formato de musical, nos conta a História da Independência dos Estados Unidos e os primeiros anos da nação americana, tendo como destaque a vida do homem que dá título ao show, o primeiro Secretário do Tesouro dos Estados Unidos. Hamilton teve uma vida intensa, uma produção escrita muito grande e uma morte digna de ficção, num duelo com o então vice-presidente do país, Aaron Burr. Com um elenco etnicamente plural e de qualidade excepcional, representando os pais fundadores, nas palavras de Lin-Manuel Miranda, da maneira como o país se parece nos dias de hoje, a obra perpassa momentos históricos verdadeiros ou modificados + interessantíssimos dramas pessoais, com arcos importantes para cada personagem, favorecendo a exploração poética e dramática de vários motivos condutores (o famoso leitmotif). E a respeito do elenco, tenho que dizer que a qualidade do grupo é tão grande, que Lin-Manuel Miranda acaba sendo o único “elo fraco” entre eles; e para quem ainda tem dúvidas, não, a palavra “fraco” ainda não virou sinônimo de “ruim” em língua portuguesa.

Através do hip hop ou com a presença de outros gêneros musicais (dependendo do que o roteiro quer passar), vemos não apenas um intenso drama humano entrecortado por sentimentos, decisões e ações de grande peso para a história dessas pessoas e do novo país que nascia, mas também um trabalho musical de verdadeira excelência, tanto na composição quanto na execução, tendo aí o destaque máximo para Leslie Odom Jr. (Burr) e Daveed Diggs (Lafayette / Jefferson), para mim, as duas performances impagáveis da obra.

As composições não inventam de mergulhar num experimentalismo sem sentido para um musical como este, algo que desviaria a atenção do espectador. A simplicidade geral das batidas e as diversas referências dentro dos gêneros explorados nas faixas, trazendo não só brincadeiras e flertes com artistas e canções de distintas épocas do rap, mas também inspiração em Gypsy (1959), Jesus Cristo Superstar (1971), Evita (1978), Sweeney Todd (1979) e um pouquinho de Les Misérables (1980) — musicais citados pelo diretor Thomas Kail — juntam-se ao uso tremendamente inteligente de temáticas musicais ligadas à personalidade de Hamilton (o homem de ação, que “não irá desperdiçar o seu tiro“) e sua intriga de longa data com Burr (o homem de reflexão, que diz “espere para ver…“).

Esse duelo de ideias se torna recorrente em todo o musical, assim como diversas outras frases e linhas melódicas que reconhecemos no decorrer das cenas, às vezes usadas em contraste, fora de seu bloco temático original… e até com outro sentido, tornando os leitmotif um inteligente recurso narrativo para o desenvolvimento e engrandecimento da história, não uma demonstração técnica de preguiça, como certos compositores contemporâneos costumam fazer. Esse uso alcança a sua máxima na ironia no final, com uma inteligente inversão dos motivos condutores, baita sacada do roteiro de Miranda. Nessa ocasião, Hamilton acaba esperando, em vez de agir, e fazendo exatamente aquilo que ele sempre disse que não faria (“desperdiçar o seu tiro“). Por outro lado, Burr acaba agindo, em vez de esperar, fazendo cumprir a sua ameaça muda e indefinida (“wait for it…“), matando Hamilton no duelo.

Quanto as referências a outros musicais, temos algumas bastante óbvias e já registradas no programa, como a bem conhecida e constantemente referenciada Modern Major-General, da ópera cômica Os Piratas de Penzance ou O Escravo do Poder (1879) e mais algumas outras, como You’ve Got to Be Carefully Taught, do musical South Pacific (1949); Sit Down, John, do musical 1776 (1969) e Nobody Needs to Know, do musical The Last Five Years (2001). Note que o contexto e a atmosfera das canções possuem origens bem distintas e essa variedade musical — mesmo que explorada através de um gênero em destaque, embora não seja o único — impede que a produção caia no marasmo, tendo aí uma muitíssimo bem estudada mise-en-scène, trabalhando em consonância com o que os personagens cantam, mas também servindo para orgânica passagem do tempo, de lugar, de sentimento daquele que narra uma parte da história ou até de momento histórico representado. O grande pilar de personalidade e atmosfera da obra se vê a partir desse ponto, desenvolvido cênica e dramaticamente nas 4 canções iniciais (Alexander Hamilton, Aaron Burr, SirMy Shot e The Story of Tonight), quando protagonista, espaço e momento histórico são definidos e marcados com um sonho que, lá no final do 2º Ato, com The World Was Wide Enough e principalmente Who Lives, Who Dies, Who Tells Your Story vem cobrar o seu preço. O fim de uma vida.

Hamilton (2020) é um musical sobre vida e legado. Mas não no sentido que tivemos no cinema em safra anterior, com O Irlandês ou Dor e Glória (só para citar dois excelentes e bem conhecidos exemplos). Há uma resignação muito madura que pontua toda a trama aqui. Ouça com atenção o sentimento da última canção, interpretada de maneira brilhante por Phillipa Soo (Eliza). Uma reflexão histórica do nosso ponto de vista, mas que cabe com perfeição na boca de uma mulher que viveu 97 anos (uma raridade para a época), que viu a fundação de um país e os rumos que ele tomou, passando a vida contando a história desse começo, a história do marido Hamilton e criando ela mesma a sua própria história, dando aos tantos órfãos citados no decorrer do musical, um orfanato (nesse ponto eu já estava mergulhado em lágrimas) e olhando para a intensidade do que ela e as pessoas que ela amou viveram, o que sentiram, a experiência que a vida lhes trouxe e o que foi possível contar de tudo isso. Até que ela saísse de cena outra pessoa (olha a indicação metalinguística aí!) viesse e contasse a sua versão da história. Algo que nenhum ator social jamais poderá controlar, escolher, negar.

A pesquisa temática de Lin-Manuel Miranda fez com que ele agrupasse e explorasse de modo divertido, cativante e progressivamente emocionante a saga de um povo com problemas políticos e sociais que, mesmo nos dias de hoje, ainda seguem ativos. E com feridas que parecem mais feias hoje do que eram na época da fundação do país. Conforme a obra avança, somos convidados a enxergar um conflito um tanto angustiante entre a voracidade e o prazer de viver (tudo isso entregue cheio de símbolos ainda no começo da peça, com o famoso “brinde à liberdade!“) e a inevitabilidade da morte, acrescida de uma preocupação maior: o que nós, como indivíduos, vamos deixar de realizações para serem observadas, aproveitadas e discutidas pelos que ficarem? O que restará de nós nesse mundo para que outras pessoas possam, seja lá de que forma, contar a história de quem fomos e do que fizemos? Quem contará a nossa história?

Hamilton (EUA, 2020)
Direção: Thomas Kail
Roteiro: Lin-Manuel Miranda (inspirado pela obra de Ron Chernow)
Elenco: Daveed Diggs, Renée Elise Goldsberry, Jonathan Groff, Chris Jackson, Jasmine Cephas Jones, Lin-Manuel Miranda, Leslie Odom Jr., Okieriete Onaodowan, Anthony Ramos, Phillipa Soo, Carleigh Bettiol, Ariana DeBose, Hope Easterbrook, Sydney James Harcourt, Sasha Hutchings, Thayne Jasperson, Elizabeth Judd, Jon Rua, Austin Smith, Seth Stewart, Ephraim Sykes
Duração: 160 min.

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